
PÉTALAS DE INSÔNIA
(1999)
Neste final de milênio, onde o circo da barbárie aumenta, a indústria do descartável avança e o homem é um produto de mercado, nem tudo está perdido. A criatividade, a sensibilidade, a capacidade de indignar-se faz com que o ser humano invente e reinvente um mundo alternativo e igualitário.
Em “Pétalas de Insônia”, Paulo Franco, poeta andreense, explora o sentimento humano de forma muito revigorante. Os seus versos trazem um achado muito peculiar e importante para os dias de hoje e dão a sintonia entre paixão e compaixão pelos humildes e oprimidos, sem cair no lugar comum.
Sua poesia ressoa o sentimento do mundo atual onde, nos poemas e no mundo, presenciamos as “mudanças” de sinal trocado: mudam-se os cenários, mas a penúria continua a mesma; a pessoa muda para ficar no mesmo lugar. O poeta nos mostra a indiferença com a vida de milhões e o enclausuramento social atrás das vidraças, chegando nas ruas das cidades desagregadas e desesperadas.
Em seus cantos ouvimos os “Gritos dos Excluídos” . De forma pungente, nos coloca em sintonia fina com a surrealidade social e com este beco sem saída a que fomos levados por um cínico estilo de desenvolvimento.
Ler o texto de Paulo Franco é uma prática cultural de indignação com este estado de coisas, pois sua palavra fala aos nossos ouvidos muitas vezes ensurdecidos pelas performances das indústrias culturais.
Altair Moreira
Jornalista e Secretário de Cultura de Santo André
EM ARTE
- “Só tem o direito ou o dever de exprimir o que sente, em arte, o indivíduo que sente por vários.”
2. “O maior artista será o que menos se definir, e o que escrever em mais gêneros com mais contradições e dissemelhanças. Nenhum artista deverá ter só uma personalidade. Deverá ter várias, organizando cada uma por reunião concretizada de estados de alma semelhantes, dissipando assim a ficção grosseira de que é uno e indivisível.”
Fernando Pessoa
PARTE I
DESCONHECIDOS DOS BECOS
“A paz que temos é inconsciente
dentro deste todo relativo
e a consciência pode ser uma ilusão
ou um sonho inconsistente
como um guerrilheiro inativo.”
CANTO DE SAUDADE
Velam os homens seus heróis anônimos
enrustidos nas entrelinhas da história
que repete suas páginas avessas
sentenciando a humanidade à letargia.
E a utopia efemeramente adormecida
ressuscita nos filhos dos homens
que gritam das praças verdades individuais
que se deformam no coletivo dos dias.
Bandeiras que tremulam em mastros ameaçados,
braços que não sustentam os rumos da história.
E decepados de glória caem num jardim de pranto
onde germina o canto de saudade das mães.
Vozes ainda vociferam que o muro não caia
e se reerga o curso natural dos fatos
e o coração tremule sem disfarce.
E caiada vemos a história em sangue,
enquanto que banhado em luz,
bandeira em punho,
um outro feto nasce.
página 01
FORÇA BRUTA
Operário feito larva
vai vencendo a terra magra
e ativando o sol da luta,
carpinando um canto lavra
pra ninar a sua mágoa
e abrandar a vida bruta.
No coração a dor opera,
pelo pão que a mão disputa
como a flor que o sol espera
sua espera é por labuta.
No luxo dos santuários
a fome alucina em vão
as preces dos operários
que débeis viram soldados
pelo lixo dos salários
cerzidos na escravidão.
No coração a dor opera
pelo chão que a mão disputa.
Lavrador que a terra altera
pra aterrar a dor que avulta.
página 02
A TERRA DAS CRIANÇAS PRETAS
E os soldados brancos
sentinelam as crianças pretas.
E as crianças pretas
já não brincam de marchar
e observam os desfiles
dos soldados brancos.
E os soldados brancos
nunca brincam
vigiando
esta terra de crianças pretas.
E as crianças pretas
se acostumam a jamais serem soldados
e só brincam de crianças pretas
dominadas por soldados brancos.
…Pois que ser soldado
deve ser só para crianças brancas
que já nascem dominando
até os sonhos das crianças pretas.
página 03
A PAZ VAI TER QUE ESPERAR
Enquanto exista a miséria
não haverá paz no mundo,
pois não existe a guerra
que mate mais por segundo.
Crianças, velhos e moços
sonhando com liberdade
e morrendo no mesmo poço
de fome e desigualdade.
Escravos do mesmo dono,
qual gado da mesma cerca,
morrendo do mesmo sono
enquanto a fome aceita.
Mas quando chegar a hora
e a hora já é chegada
nós pomos o dono pra fora
juntando o gado em manada.
E vamos quebrar a cerca
e acordar deste sono
e pra que a igualdade aconteça
nós todos seremos donos.
Donos da nossa terra,
donos da nossa ilusão,
donos da paz sem a guerra
e do fruto da produção.
E haverá liberdade
para a igualdade buscar,
enquanto houver uma grade
a paz vai ter que esperar.
páginas 04 e 05
JOÃO DE DEUS
João sem braço
que o aço de alma prensa comeu.
João cansaço
que apesar da fome não morreu.
João que de tanto rezar
virou ateu
e que apesar dos sonhos
antes da morte adormeceu.
João que um filho jogou no mundo
e que perambulando pelos bares
virou vagabundo.
João que de morrer
não descobriu a vida,
que apesar da lida
não falou com Deus.
João que apesar da morte
não chegou ao céu…
…pois que se perde
sempre no caminho
a alma de um ateu.
página 06
MULHER (ou A PUTA)
Um dia te deram um nome provisório
o qual permutaram pelo de esposa.
Chamaram-te, menina, menina moça
e de menina em menina, mulher.
Deram-te lições de corte,
costuraram a tua boca,
maquiaram-te em moldura
de barroco efeito
e te fizeram dar a vida
para proteger o fruto virginal perfeito.
E com as regras de ternura
tornaram-te a imprestável candura
reprodutora do ócio mortal do lar.
Mas tudo bem,
no fim, te prometeram um bem:
Ensinaram-te a ser doce para o amargo do par,
amar cedendo sempre a tua parte,
amar com arte coibindo a tua libido,
gemendo a dor do cotidiano
para amenizar o teu engano
e satisfazer quem te deu o nome de marido.
E como já de berço
rezaram-te todos os terços
com as regras de etiqueta,
menstruação e boa conduta,
caso percas o recato
arrancar-te-ão do retrato
pra te tomarem o nome
e te chamarem de puta.
página 07
QUARTEL
Vejo o meu país,
vejo bandeiras,
com coronéis, garis
e lavadeiras.
E me ensinaram um hino
que não serviu.
Moldaram-me militar menino
que do quartel fugiu.
Fui ver as ruas
do meu país,
mulheres nuas,
homens servis.
Então eu tive medo
do que eu via:
O que eu via era segredo
e a multidão dormia.
Não via a miséria,
não via nada.
Nem via que a favela
era a senzala.
E essa gente perdida
ainda dorme agora.
A minha pátria vendida
pro capital de fora.
Então eu vi que o hino
era mentira
e o militar do hino
virava tira.
E o quartel não era
mais que uma prisão
da pátria que prospera
com a escravidão.
E essa gente magra
trabalha muito
pra alimentar canalha
e virar presunto.
Mas vai virar a mesa
desta prisão!
Como pode tanta gente presa
não fazer revolução?
páginas 08 e 09
EM NOME DA PAZ
Guerras matando esperanças,
minando crianças
que sonharam um dia ver o amanhecer.
Mas caindo do céu,
qual canção de ninar,
veio a morte nas bombas
voando qual pombas,
germinando as sombras
feito o anoitecer
que mata sem saber
os raios de sol.
E fica no ar
a pergunta maldita:
Quem é o culpado?
Quem é o homicida
que gerou a morte
em troca da vida
em nome da paz?
Página 10
DONO DA TERRA
Eu não me iludo,
não aceito ficar mudo
e não me calo
enquanto gente
for servente de gente
e a semente for plantada
pelo braço
de quem não tem nada.
Não mudo o jeito,
eu não calo o que é direito
e não aceito ser manada
e o ser que lavra
não ter nada na colheita
em tanta terra vigiada
pelo dono da seita
que é o dono da terra
e que não planta a semente
mas é dono da gente
e é o dono de tudo.
Eu não me iludo,
não aceito ficar mudo
e não me calo.
Página 11
CAMINHANDO AINDA
Eu continuo caminhando ainda,
mas não cantando, que não posso mais.
Ainda sigo a canção perdida
acreditando que somos iguais.
Tem muita gente que já foi embora
por não querer deixar acontecer
e outros, mesmo vendo que é hora,
viram espera e fingem não saber.
E pelos campos fome ainda cresce
vingando sempre em grandes plantações.
Pelas ruas gente marcha em prece
indecisa em grandes cordões.
Ainda vemos soldados armados
que ao invés de flores semeiam canhão.
Vigiam ainda os desesperados
pra não brotar o tema da canção.
E nos quartéis vão ensinando ainda
os velhos temas da antiga lição:
De morrer cedo pela pátria linda
sem ter na vida um pedaço de chão.
E nas escolas, nos campos, nas ruas
outros soldados sem armas na mão
vendo a miséria e crianças nuas
ensinam versos de revolução.
E caminhando e cantando ainda
com amor na mente e flores pelo chão,
levo a certeza que a história vinga
todo esse tempo de escravidão
Homenagem a Geraldo Vandré
páginas 12 e 13
CURUMINS
Como se fossem gado,
os corpos desses homens
arrastando arado
tornam do deserto
um formoso jardim.
E por não serem gente
vivem das migalhas,
do lixo e das tralhas
num luxo indigente
de uma flor ruim.
A fome que manejam
forma dos seus filhos
frágeis objetos
que se tornam fortes
pra virar concreto
e os manter assim.
Então por piedade
e por não terem teto
os donos da cidade
feita na aquarela
da desigualdade
os põem na favela
pra sobreviverem
de esgoto e capim.
Como se fossem gado
ruminando a vida
ficam desdentados
de corpo em ferida
sempre embriagados
sem terem comida
pra seus retardados
magros curumins.
páginas 14 e 15
CANTADOR
Não mudo o rumo
e faço um fundo musical
que não agrada.
Alargo a estrada
e pela escada do meu verso
escalo o universo
e fundo um mundo diferente.
Não calo o canto
enquanto brote no ventre
um semelhante,
enquanto reste da vida
um só instante.
Não calo o canto
enquanto o pobre
for produto da riqueza
e a mesa farta
for o fruto da pobreza.
Não calo o canto
enquanto um manto
acobertar essa agonia,
enquanto brote no horizonte
o fim do dia.
Não calo o canto
enquanto um pranto
estiver pronto
pra brotar no mundo.
página 16
EMBOSCADA
Um continente de miséria,
meu país escravidão.
Muita fila, muita espera,
muita morte no sertão.
Meu país que é continente,
servente de outra nação,
fala em Cuba e Nicarágua,
vendo a morte no portão.
´
Ninguém viu barriga d’água
matar filho de patrão.
A fome que nos esmaga
é fruto da escravidão.
Morrer cedo de emboscada,
defendendo com ardor
que as terras da pátria amada
sejam do trabalhador.
E pela reforma agrária,
pelo fim da exploração,
é melhor que de malária,
de miséria e inanição.
E o povo tem liberdade,
nos diz a televisão,
escondendo a sociedade
que disfarça essa prisão.
página 17
VIOLÊNCIA ANIMAL
Eu olho o mundo
e os homens
por cima do muro
esperando.
A covardia se escondendo
por detrás dos óculos,
das vitrines
e dos sorrisos
que disfarçam uma emoção metálica.
Mover uma palha
parece tão difícil
quanto mudar o mundo.
Mudar os homens é utopia
e direcioná-los
é buscar a consciência
do que não existe.
A miséria explodindo em cada esquina,
flores murchas entre carabinas,
crianças que se definham
meio a burgueses que desfilam seus bens
por entre os marginais.
Eu olho o fim do muro
e os homens que esperam
pelo fim do mundo
decifrando profecias naturais.
O mesmo mundo sem muro
demarcado por desigualdades
e milenares violências animais.
páginas 18 e 19
A CIDADE
A cidade mórbida
em suas depressões de álcool e sonho
meio a grandiosas solidões coletivas
e tensas tentações que escorrem
pela madrugada que mata
esperanças que trafegam disfarçadamente vivas.
A cidade em mímica
ironicamente fantasiada
de torcida insana.
A cidade clama por emprego.
A cidade chama o medo.
A cidade mística
em suas crenças rítmicas,
em suas damas e noites.
A cidade sempre em transe
entre o trânsito e o inferno
de cada ser efêmero que se debate
acorrentado entre a prece e a promessa,
de quem sabe, ser eterno.
A cidade lânguida
em sua estupidez.
A cidade corre, a cidade morre
na velocidade de suas máquinas
e na lentidão dos instantes
que apontam para os refletores
de uma incontestável frigidez.
Página 20
INTERNAUTAS DA DOR
Filosófico medo refletor
de tudo o que é neo,
em tudo o que está na rede
da grande onda de sonhos que navegam
aonde os tolos pedem um sentido
para o medo imortal
que negam.
E quase tudo encerra-se
no medo
de que a morte o enterre
enquanto encerra-nos.
Ternos,
poderes e medos eternos
passeiam entre os miseráveis
que trafegam nas sarjetas
num tempo onde insensíveis internautas
alienam-se de si
como que a movimentarem-se por mouse.
Filosófico sepulcro social
de tudo aquilo que a memória guarda
da sofreguidão deste pulsar de dor,
tamanha dor
que não há verso que a delete,
a mesma dor que se entrelaça
escorrendo entre os dedos
disfarçada de internet.
Página 21
MARGINAIS
Flácidos
caem das construções,
dos trens, da ilusões
enquanto sonham
com seus times campeões.
Em seus corações
brota a flor de um cacto
alimentada com cachaça
e ignorância.
A razão para estarem vivos
é que dóceis são demais.
Aceitam ruminar a dor da vida
indiferentes como os animais
e uma palavra culta
os convence à indigência
que os torna marginais.
Aram a terra,
movem as máquinas,
carregam os caminhões.
Chamados vão à guerra,
mas não às revoluções.
página 22
PEQUENO PODER
Bizarros espíritos
de osso e carne e sonho e medo
a se consumirem
na saliva que os enterra.
Seres insanos
com suas seitas e sonhos
geradores de guerra.
Intento infame
o de detê-los nos instantes
de suas iras pequenas
que os enclausuram tristes
diante dos atritos que fabricam
paranoicamente lobos
em banais disputas que os bestificam.
Destroem-se ironicamente
enquanto capturam migalhas
nos espaços sórdidos
de pequenos poderes inimagináveis.
Alucinações que fabricam
enquanto brincam de se digladiarem
na insana condição de servilismo
em que permanecem
animalizados e dóceis
num antagonismo
que os prende à solidão.
Página 23
O BELO
O novo nascerá vindo do velho
qual artista que a martelo
a arte nova cria
transformando a pedra em belo.
E o belo que da pedra sai
molda o que é duro
como a luz em beco escuro
em si se sobressai.
E do velho que se vê no novo
outros sonhos reflorescem,
como as gerações em cada povo
um novo revolucionar aquecem.
E assim se tece a criação
se transformando a cada renascer,
verso a vagar de mão a mão
pra no instante eternizar o ser.
E o novo que se vê no velho
é o criador a cultivar a inspiração,
qual artesão a cizelar verso libelo
pra eternizar do criador a criação.
Página 24
O ARTESÃO DA ETERNIDADE
No espelho, o tempo nobre
tetricamente emoldurando-me
em passageira obra pobre.
Tempo, tema de mim que dobra
nos meus versos temperamentais,
nos meus tédios que atordoam
badaladas de silêncios sobrenaturais.
No espelho, o cacto da face refletindo
o efêmero transeunte dos dias,
o tentador das tentações se indo
todo e absoluto de agonias.
…E o luto dos instantes neste porre
em quase tudo o que em nós se move
em nossa pulsação que em tempo morre
pra que o infinito sobrenatural se prove.
Página 25
VITRINE
Lá fora o mundo ambíguo,
suas paixões abstratas
perdidas no concreto
de cada sentimento.
Além do teu olhar
a infinita liberdade
do que buscas
no que não avistas.
E a emoção que represas
toda de silêncio
pelas entranhas do que sonhas
como a flor a se entregar aos raios
antes mesmo que o sol se ponha.
Vejo-te sorrir o solto amor
que não sentiste ainda
e que esperas a brincar
enquanto esconde-te da avalanche
de desejos que te arrebatam.
E quase pede-me
que eu não me impeça
de tocar-te.
E quase toco-te
de tanto que a olhar-te
prende-me à tua alma
como se a minha
fosse o outro lado
do que sentes.
Página 26
A ESFINGE
E do pobre espírito humano
grandiosas esfinges sobressaem-se,
grandiosos sonhos
de dialéticos pesadelos.
Enigmas que sepulcram disputas
indecifráveis no mistério das ambições.
…E o leão de cada um
a triturar o cordeiro de nós.
Esfinges de sal e sexo derramado no caos.
E da beleza enigmática dos sonhos
afloram-se em sutilezas invisíveis
as mulheres da geração desflorada.
Desfloridas sensações deste abstrato.
E do pobre espírito humano
sobra a esfinge descoberta
esculpida em carne,
solidão
e uma paixão
falsificada.
Página 27
ODE AO SILÊNCIO
E do silêncio arrancamos o atordoamento das horas.
Emolduramos nossos medos que nos bestificam.
Escondemos as iras, as paixões e as contravenções
do que está a nós determinado que seja, sem sermos.
E do silêncio as canções,
os versos raros,
as grandes invenções se dão.
E do silêncio a dor que se abstrai.
…E parecemos distraídos compenetrando-nos
no universo vazio de nossas cores vagas
enquanto nos violentando nos defendemos de nós.
Silêncio que nos executa
triturando as sensações que escondemos,
os sonhos que detemos
para não doer a realidade alheia.
Silêncio, teia infinita sem som,
falta de voz, obra sem tom,
todas as tonalidades de emoções
que se misturam para descobrirmo-nos.
E o olhar, este traidor absoluto,
a entregar nossas verdades.
Mecanismos do silêncio que confundem
o que exigem do lado de fora de nós.
E delatados balbuciamos
uma negação facial de riso ou pranto
enquanto que o silêncio se recompõe
sólido de encanto
com a probabilidade efêmera de infinito
como acordes que se encontram
na composição de um novo canto.
Páginas 28 e 29
AUSÊNCIAS
Eu vejo o teu sorriso no passado
empacotando os laços do presente
que te prendem a mim do outro lado
vivendo o mesmo instante e estando ausente.
E vejo no olhar do nosso espelho
metáforas contidas no que somos
do acerto que é sorrir dos desenganos
que é o contar dos dias no que fomos.
E os frutos que vingaram deste parto
do amor reinventado entre os panos
vivido entre os ponteiros deste quarto
que marcam o eterno dos enganos.
Escorregando o som de cada instante
revemos nosso vídeo de futuro
enquanto folheamos nossa estante
na meia luz que ofusca o nosso escuro.
E vemos a emoção empoeirada
cansada de vagar na densa estrada
e desviar dos pingos deste pranto
que molha os acordes deste canto.
Acordo-me de um sonho e te procuro
num álbum de retrato violado.
Surpreendo-te mirando o nosso muro
sonhando te encontrar do outro lado.
Página 30
SOBRE OS TRIGAIS, ACORDES.
…E SOBRE O TEMPO.
Sobre os trigais,
acordes a dobrarem contra o vento
e no olhar
os sonhos que conspiram contra o tempo
e um trepidar no coração
qual no jardim um broto
a sucumbir à luz no seu intento.
E o tempo a reflorir-se
a cada instante mais faceiro
como se os sonhos que sentimos
fossem frutos tão maduros
que se pudesse pressentir o cheiro.
Sobre os trigais, ao sol,
qual nota musical que desafina,
uma procura, um arrebol
no amor maior que contamina.
Sobre os trigais,
acordes.
…E sobre o tempo
o sonhar
conspirador da ilusão
que como o vento
musical sobre os trigais,
a sucumbir no seu intento
desafina o coração.
Página 31
O SÓTÃO
Há o refúgio que buscamos
no incansável escorrer dos anos.
Revolucionamos e adormecemos
como quem não sabe ao certo
as certezas que defende.
Acordamos meio à ventania
e quase tudo está passando.
Agrisalham-se as ideias
e os ideais se perdem
na densidade das horas.
E cambaleiam sonhos
na emoção que ainda pulsa.
Procuramos nos discos
a ilusão que tateamos,
mas pouca coisa ainda toca.
Quase tudo já passou
e se debatem as utopias
estateladas em meio às teorias
que não chegaram à prática
do que nos tocou.
E na incerteza
aos entulhos do sótão nos juntamos.
Vasculhamos os destroços do deus
que destruímos em praça pública.
E vemos erguerem-se, entre velhas,
novas bandeiras,
que, entre novos,
velhos sonhos espalham
para emergirem o de ontem
velho poder de sempre.
Página 33
O CONTADOR DE INSTANTES
Na madrugada
a fala petrificada de silêncio…
os minutos que não passam
além da lentidão que extermina.
Fantasiados de singela eternidade
sentimentos infames
que sobrevoam o medo
e sustentam a aparente coragem
que vaga a madrugada quase extinta.
Cães em cio
buscam-se ruidosamente
bulinando o silêncio
dos apartamentos.
Do outro lado do olhar
outra redoma
a vagar enquanto espreita-me
…um mero contador de instantes.
Página 34
A CARICATURA
Há em nós um lado verdadeiro,
meticulosamente detido.
Há em nós o lado previsível,
resenha interior caracterizada
na caricatura do riso.
E há as rugas arrastadas
pelo tempo a arrastar-nos
como cicatrizes de um desenho
a nanquim e dor.
Imagem fugaz e provisória
exposta no espelho
das abstrações do que sentimos
a olharmo-nos.
…Obras passageiras
no provisório eternizadas,
qual caricaturas infiéis
em quadros estereotipadas.
Página 35
CASTIÇAL
Armados, homens não amados
projetam-se qual projéteis
sem direção,
qual vela em castiçal
a derreter-se na escuridão.
E praticam o pânico que possuem
como o que se tritura
qual o alimento de si,
a se destruírem por engano.
E entretidos nos seus tédios
tentam tétricos sorrisos,
tenebrosos guizos
contaminam a serpente da fala.
E praticam amor
como quem goza de si,
em pose eterna
qual uma vela em castiçal de sala.
Página 36
O EU NOSSO DE CADA DIA
O incontível de nossas faces
falseia no vagar dos dias.
Oscilantes objetos entre os sonhos
que enclausurados minguam nas ambições.
Emoções que vacilam vasculhadas no horizonte
de alguma ilusão perdida
no arrependimento do irrealizável
em meio aos planos do desconhecido.
Verdades que vazam
do véu das alucinações…
Busca existencial do que não vemos
sem acreditarmos no que tememos
das desilusões.
Ateus, não atingimos
o eu nosso de cada dia
e nos fingimos de estátuas em letargia,
fugaz imagem de carne e agonia
a pulsar uma emoção de pedra,
incontível na face que vaga
sem reverenciar o dia.
Página 37
O INTRANSPONÍVEL
Instâncias as quais não atinjo.
Distâncias intransponíveis.
Incorrigíveis erros na mente insana.
Níveis de reflexão
inadmissíveis à matéria humana.
Fórmulas concretas nas ilusões
que corrompem o abstrato da face.
Incertezas que se deformam em disfarces
e interferem na velocidade das emoções.
E o tempo, o qual não entendo.
A morte vindo e eu vendo
sem, no entanto, apreciá-la,
sem, no entanto, precisá-la.
Imprecisão que vaga a existência afã.
E o poeta, entre vendas, à parte,
vigiando o intransponível do futuro
e transformando o tempo, obscuro,
em incerta dimensão de arte.
Página 39
PARTE II
BECOS DOS DESCONHECIDOS
“Anomalias sociais
que se confundem
no obscuro das faces
que estranhamente se fundem.
Edifícios de medos,
tédios que se empilham
num amontoado de iras
que se cruzam
num silêncio de poucas palavras.”
(In Anomalias – Paulo Franco – Notas das Horas – 1995)
BECOS DO DESCONHECIDO
Do que nos pulsa à busca
que o sonho espelha
em meio à madrugada de espera,
sobra o dia,
dia a dia iludindo-nos
a um futuro que não vem.
Futuro que nos passa
qual a estação a espreitar o trem
que passa
despejando incansavelmente
os homens pela plataforma
que os acolhe espreitando-os
enquanto escorrem cautelosos
pela escuridão dos becos do desconhecido.
E entristecido
o zelador das horas
preso em desencanto
afronta-se noite a dentro
e não nos permite adormecer
o sono de um cansado pranto.
Sonâmbulos retornamos à busca
do que nos ilude em cada pesadelo,
ancorando-nos no peito
um não sei que de ilusão
na intrigante eterna madrugada
que alimenta o dia e ilumina o ser
que desconhece os becos
desta escuridão.
Página 39
CONTÁGIO REGRESSIVO
Vejo o silêncio estampado nas faces
a corroer as almas
qual daninha larva a degustar o riso.
O mal estar preciso
a escorrer no olhar
como gotas de sobrevivência
a entorpecer o bocejar do dia.
O momento indigesto da magia
que passeia nos gestos
dos que transitam no quintal
à caça do que não possuem
enquanto ruminam letargia
nos olhares que poluem.
A musical rotina que atordoa a emoção
no coração que em descompasso ecoa
o volume descontrolado das desilusões
enquanto o sonho acalantado voa
no eterno afagar das tentações.
E o silêncio estarrecedor,
qual no deserto a morte invencível,
a desenhar-se no horizonte
a quem miragem fez da vida, irreversível
embriaguez de si a cada instante.
Silêncio preciso a corroer o riso.
Silêncio preciso.
A corroer o riso a ilusão.
Sonho estarrecedor e impreciso
no preciso descompasso da emoção
Página 40
DIMENSÕES
Transcendo-me por vezes
em meus sonhos
que se desfazem
na espera.
Estou por algum tempo
em metáfora passageira
de esperança e aflições…
Metonímia de mim,
o pé de alguma coisa
que não anda.
E pela face
são tensões que escorrem
enquanto o peito se desespera
multifacetando as dimensões do medo
que nos esfacela
neste esconderijo de ilusões
e transcendências.
Página 41
ENGANO COLETIVO
No outro dia, um banho.
Lavagem cerebral ?
Foi tudo engano ?
…Um gole de café, o sol
e um coração que pulsa insano.
Na vadiagem da manhã
a impressão de que tudo parou
no silêncio incômodo
do vazio dos instantes
que atormentam a emoção.
No tédio das ideias
o infinito dos ideais
que teatralizados sem plateias
já não tocam mais.
O engano amargo que transborda
no silêncio das lembranças.
As palavras da noite, remoídas
no café, amargo em desesperanças.
Na rua, o olhar que se perde
entre homens e cães
que trafegam sonolentos
no anúncio de que nada mudou.
Foi tudo engano.
A morte nos instantes é coletiva.
O amargo vaza a face dos que vagam
no disfarce do que acaso ainda viva.
E a felicidade expressa
em quase tudo
o que buscar, talvez, se hesite,
é outro engano,
pois que a vida faz de conta
e no hesitar, vacila
e não permite.
Páginas 42 e 43
INSACIÁVEL
Tempo de aflição e espera
onde a morte não é mais
que necessidade.
Tempo de angústia
e incalculável infelicidade
onde o sorrir
é uma pedra que dói.
Tempo onde a única certeza
é que a vida é incerta
e onde o próprio tempo pára
para aguardar a morte
qual uma amante insaciável.
Página 44
PREMISSAS
Há nos homens sonhos grotescos,
felicidades incertas
e incertezas que se transformam
deformando mentiras
em gigantescas verdades.
Há nos homens mentiras grotescas,
verdades incertas
e sonhos que se deformam
transformando felicidades
em gigantescas incertezas.
Há nos homens incertezas grotescas,
sonhos incertos
e felicidades que se transformam
deformando verdades
em gigantescas mentiras.
Há nos homens medo
diante de tanta deformação de conceitos
no vai e vem de premissas
que premeditam mentiras
para que as verdades incertas
tornem-se absolutas certezas
do que em si,
certo será jamais.
Página 45
SEMÂNTICA
Viaja em mim
a alma de um poeta
e a espada
de um guerreiro ateu.
Vejo o mundo
como um espelho antigo,
angústia e solidão
retraída e muda.
Meu verso,
na luz
não vale nada.
Minha rima
é só uma estrada
tornando a vida
mais fácil de ser digerida.
Minha semântica
é medo,
é solidão.
Minha ilusão, espírito
e pouca coisa mais
além do que pressinto
desta escuridão.
Página 46
INTERMINÁVEL
Intenso luto
nesta sensação de lentidão.
O milênio que se extingue,
os homens que se debatem
entre os bombardeios e o consumismo.
Consumimos a destruição alheia.
Os nossos filhos brincam
com as armas de uma guerra
interminável.
Pessimismo, desesperanças…
Sintomas de um mal sem cura
pelas faces de um caminho
onde não há procura.
E o sofrimento diário
por sobrevivência física.
Perde-se o interesse
pelo clínico pôr-do-sol.
Transtornos bipolares,
irritabilidade, mania,
aceleração do pensamento
com ideias inferiores e euforia.
Eletroconvulsoterapia
para estes dias de ternura
e agonia.
Página 47
O INFINITO MAIS DISTANTE
Na distância, o horizonte
a seduzir-me
aliciando meus sentidos
que se enclausuram
diante do impreciso.
E indeciso, sinto que preciso
entregar-me pra ser livre
da moldura deste quarto,
pra pousar o meu semblante
em qualquer filosofia afã
ainda que em outro retrato.
…E o divã a espreitar-me
espreitando o horizonte…
a torcer, que enclausurado,
embriague-me de sonhos
pra loucura do retrato
de qualquer outro instante.
Na distância, o meu semblante
a refletir-se no horizonte,
indeciso entre a clausura do divã aliciante
e a imprecisa liberdade
a acenar-me do infinito mais distante.
Página 48
AMOTINADOS
Amotinado em minhas emoções
disparo olhares pela sala
onde detido em sensações
o sonho, em videotape, cala.
E vãs trincheiras amontoo na janela.
Sem liberdade, um tutor da própria cela.
E sentenciando-me, na dor, à própria sina
sentinelo em mim um inimigo que fascina.
E amotinado surpreendo-te ruim,
minando-me minada em quereres estranhos.
Amotinada em ti, sorris, detida em mim,
vil combatente na guerrilha dos meus sonhos.
E o fim que leva o combatente ao deserto,
qual o torturado a derivar à sorte,
tememos, guerrilheiros do que não é certo,
tutorando nesta cela a nossa morte.
Página 49
A VIDRAÇA DO MEDO
Sóbrio
sombras sinto
e sentencio meu silêncio.
Sóbrio sonho, sóbrio minto
sobre sóbrios sonhos
que entrelaçam os meus versos
com verdades que não sinto.
E pernoito-me sonâmbulo
numa solidão que vaga em desamor
criando um vago intenso
e coletivo.
Envaideço-me de pedra, solitário.
Sobre-humana pedra de silêncio
sentenciando-me a sombras.
Curvo-me fiel
no que disparo para o que represento
nas verdades que invento
pra sorrir neste mormaço
infiel e denso.
Penso escapulir
deste colapso pleno e absoluto
e acordar-me no aceno
deste leito de sereno luto.
Leio-me no espelho
das metáforas
que causam cambaleios no meu verso
e que alimentam todo o meu sentido
inverso.
E calo-me sombrio
na vidraça do meu medo
que sepulcra algum segredo
que não é tão sóbrio assim.
Páginas 50 e 51
O INFINDÁVEL DAS HORAS
É dia. Partícula insignificante
no acúmulo infindável das horas
que somam a eternidade.
Entre os bocejos do resto da noite
carros entorpecidos
atropelam pessoas
que passeiam insensíveis pelas avenidas
que costuram as realizações humanas.
Os cães mordem-se nas calçadas
enquanto disputam os cios
que continuam acontecendo.
Meio a hipócritas em pose,
prostitutas descansam himens
cansados da noite anterior.
Políticos mastigam artifícios
de uma violação
que sustenta malefícios
que os periféricos não perceberão.
É dia.
E no acúmulo infindável das horas,
entre os bocejos das ilusões,
os homens entorpecidos em seus cios
mordem-se nas calçadas,
insensíveis ao dia
e periféricos de si,
escravizados por suas próprias ambições.
Página 52
AFOGAMENTO COLETIVO
Olho o calendário
e não é dia nenhum.
Não é hora de nada.
Não deve ser momento ainda.
Retardo meus ponteiros
enquanto que observo
o bocejar da rua
entre a vidraça e os sentimentos.
Tento versejar o não haver do tempo.
Tento encontrar-me entre os versos,
mas não escrito, perco-me, lento
na inspiração que morre no intento.
Tropeço nos soluços
que ameaçam um afogamento coletivo
e sobrevivo o olhar que cambaleia
meio aos homens que se baleiam
displicentemente
refletidos na vidraça
que boceja a rua no mormaço das horas.
Página 53
PALCO CONSUMADO
Depositamos no espelho
o outro lado do que buscamos
dos sonhos que inventamos
pra amenizar o dia estéril.
Oscilações de amor e iras
que extravasam nossas máscaras
como se a anormalidade das relações
fosse o palco consumado do silêncio.
Mas nossa boca move-se
a morder os pensamentos
embaralhados pelo tédio
que nos delata criminosos
no que sentimos sem executar.
E depositamos no semelhante
o espelho
daquilo tudo que imaginamos
comprometendo o sentimento
alheio.
E nos declaramos assumidos
neste pedestal de ausência
qual atores consumidos
numa teatral demência.
Página 54
INSTANTÂNEO
Sou quase nada do que desconheço.
Enquanto acordo, sonho
e sobrevivo
até que desfaleço.
E quando acordo
curvo, entre as mãos, o pensamento
pra saber se sou estranho
ou se sou sonho
coagindo o tempo.
Lento, às vezes,
ouço um parto no silêncio.
Instantâneo, perco passo
e faço desta vida
um desfalecimento.
Apaixonado pela fêmea,
fera e mudo, amo.
Acuado pela fera,
fêmea e mudo, clamo.
Sou, na face, forte
e por dentro, poesia
e da vida mais a morte
em total desarmonia.
Página 55
PÉTALAS DE INSÔNIA
Tempestades de sensações
inundam o peito que não dorme.
O olhar embriaga-se
no rústico silêncio
da alvenaria dos instantes
que atormentam.
Momento pós muro. Pós queda.
Nova ordem de rancores e iras
metralham nosso medo doce
de quem teme o sonho
na fragilidade que o emoldura.
Tempestades de dúvidas
disparam pétalas de insônias
em nossos sonhos arregalados
que espreitam os ponteiros
de um relógio que não dorme.
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