Editora Multifoco – Selo Vale em Poesia

 

“O artista exprime apenas aquelas suas emoções que são dos outros.”

Fernando Pessoa

 

“Bastando que haja espectadores, haverá representação.”

Bertolt Brecht 

 A QUARTA PAREDE – AUTENTICIDADE LÍRICA 

         Nesta obra, com intensidade surpreendente, Paulo Franco nos leva a mares bravios, águas agitadas, gigantescas ondas todas arrebentando em espumas que perguntam, que questionam, nos questionam, mostrando-nos a realidade: somos náufragos em nós mesmos. Somos nós os arquitetos de nossas intransponíveis “quartas paredes”, e assim sendo, também somos os responsáveis por essa sociedade acinzentada em hipocrisia, adornada num artificialismo barato, descartável.

          Reflexivo, o poeta lança de um espelho e faz com que vejamos nossa verdadeira face e todo nosso caos interior, despidos de todas as máscaras – vemos e somos vistos – numa inquietação de sensações, imagens e sentimentos.

            Sem a preocupação de seguir tendências poéticas, faz-se nítida a sensibilidade, a ousadia do poeta que estendeu-se ao limite do seu sentimento, da sua verdade, onde o ato de construir é substituído pelo ato de gerar, assim cada poema é parido, autêntico, com dor e alegria, sangue e choro, vida.

          Isto me leva, como poeta e amante da boa literatura, sem medo de críticas, a dizer que “A Quarta Parede” é uma preciosidade no campo da poesia, canto ímpar de um poeta que mesmo já tendo mostrado todo seu valor, lirismo, conhecimento da língua em obras anteriores, nesta, se supera, inserindo seu nome, sem dúvida nos mais altos patamares da Literatura. 

          E é com esse olhar que convido a vocês, leitores, para que se entreguem a essas folhas, e adentrem ao âmago da emoção e transcendam também as tantas “quartas paredes”, sem máscaras, sem roteiros, no palco real do dia a dia, onde Paulo Franco colhe suas inspirações e floresce em poesia. 

Tonho França

Poeta e Editor

   Selo Vale em Poesia 

 

A ESTÁTUA

 

A alma

estendida no varal

a me conter de encantos.

Desalinhos no que sou

confundem o que sinto

num quintal de prantos.

Autônomos sentidos

que dirigem contratempos

nestes desencantos.

 

O cenário é um corpo nu

que desabrocha a virgindade

de um pecado necessário.

Refém das ilusões

acolho as contradições do espírito

para retalhar minhas vontades

que são crimes que me invadem.

 

E desafio o amor

como quem vai a um labirinto

que não tem saída.

Inusitado descaminho

do que não tem volta.

 

Infidelidades que ao poema

se acomodam

pra comporem versos brandos

sobre a vida vã.

 

Disforme no que fui

me encontro atrás da cura

para as deficiências

do que não senti.

O que supunha meu sustento

era embuste impedindo o meu intento,

era o medo das contradições

pra me manter menino

vendo um homem a se decompor

aprisionado em formas fixas

de um poema inacabado.

 

Salutares dores denunciam

minha estátua interior.

 

Olho o varal

e estendida a alma estanque

que se move à revelia da vontade

pelo vento de um sentir

que não se abala

porque é plena liberdade.

 

E o corpo nu em palco aberto

a me compor como um poema incerto

e a abalar a multidão

que aprisionada grita

estagnada por aquilo que não vê.

 

Sentenças e crenças que se mesclam

no auditório imaginário

desta ficção que aliena o que não somos.

 

Sopros que da alma eclodem

para sucumbir o que morreu

num picadeiro onde ninguém ri

porque o palhaço representa

um roteiro que não entendeu.

 

Mas a estátua aos poucos

bole a face e causa susto

pro auditório que a custo

arrebenta a parede deste imaginário

e sorridente acha imprudente

as cenas que não vê.

 

O teatro se desfaz

e a estátua sente o outro lado

do cenário que a prendia

e vê a vida e vê o dia

e à revelia da plateia sentenciada à ilusão,

vai procurar outro roteiro

para outro palco

numa nova ordem para a velha ficção.

Páginas 13, 14 e 15

 

A MÃO E A LUVA

 

Uma chuva leve

lava o meu olhar

que peca.

 

A alma ardente,

o coração em chamas.

 

A minha mão

na luva

a esconder-se do que toca.

 

Dores que pulsam

incisivo tempo

de espera.

 

Relativo

o meu semblante vaga

no horizonte aberto

como afago pro olhar fechado

que se busca no infinito incerto.

 

Na chuva leve

em denso olhar

um pranto morno

a se mesclar

no frio das gotas

que me tocam

neste procurar.

Página 16

 

A MÁSCARA NO ESPELHO



No espelho

a máscara dirige o meu cenário

de mentiras que me acalmam

no espetáculo de contradições

que represento.

 

E vejo a sombra que de mim

nos outros resplandece

ser o que nem sei se sou,

mas que no outro

como espelho transparece.

 

Máscara em mímica

que incorpora o meu papel

e hipnotiza meus sentidos

encorajando a maquiagem que me imponho

pra pensar em outro sonho

diferente do que sou.

 

Um figurante que protagoniza

apenas as cenas de dor.

Dublê de si

que anestesia a cara confinada

num espelho que não tem mais cor.

 

Máscara despida à minha frente

refletindo as várias fantasias

que estão fora do espelho

em que me assisto.

 

Fecham-se as cortinas

e o auditório vai embora

enquanto um louco balbucia

que não teve graça

porque a máscara despida

de pirraça ou de pavor,

era a cara maquiada

do seu próprio autor.

Páginas 17 e 18

 

A METÁFORA DO CAIXÃO

 

Metáforas transitórias

meio a juramentos de eternidade

na frivolidade dos olhares

que mal se espiam

na cumplicidade de uma liberdade ineficaz.

 

As execuções penalizam os sentimentos

sentenciados às rotinas

de um querer imaginário e inatingível.

 

O corpo, já bem desfalecido,

é uma coisa  a caminho do caixão

que clama pela lápide da porta

que não pode ser aberta.

 

Arrombamentos que se impõem

qual crimes necessários

ao horizonte sem tramelas

enquanto que alguns entes despencam

dos lustres no cenário das alianças.

 

Improváveis paixões

apunhalam a estabilidade

bem comportada do dia a dia

arrancando a paz dos corações

para supri-los com desordens

de procuras vãs.

Página 19

 

A PESSOA

 

Em minhas lágrimas,

relativamente sujas,

estão as incertezas

de uma alma contraditória

e incompartilhável.

 

Trago no meu coração

o ópio das horas.

Indiferente a quase tudo

atormento-me

com a simples futilidade metafísica

dos que passam ao meu redor.

 

Imaginar que no dia seguinte

seguirei vivo

traz a insônia necessária

ao que quero compor.

 

Seria tão fácil se eu fosse os outros.

Dentro de mim, múltiplo,

a traição é sigilosa.

 

Do outro lado da minha janela

inúmeros donos de tabacaria

riem-se de mim

que não me sinto pessoa.

 

A ordem civil me transformou em nada.

Sintetizado em cumpridor de obrigações,

sem sensação nenhuma de vida,

desarmonizo-me

meio a uma harmonia falsa.

 

O universo se reconstruiria

em ideal de esperança

se o sorriso dos que passam

do outro lado da minha rua

não fosse

só um fato infeliz.

 

As tabacarias quase não existem mais,

mas os poetas são os mesmos

e se multiplicam em cruzes

que demarcam milenares aflições.

 

O pássaro que avisto no horizonte é irreal.

Melhor não ver

o que a parede do imaginário

sanciona como fato.

 

Acreditar que a vida

arrasta o destino das coisas

é ceder ao medo do invisível

e ir às representações

que amenizam nossos crimes inafiançáveis

e perfeitos.

Páginas 20 e 21

 

A QUARTA PAREDE

 

No fundo do eu,

espectador do imaginário

e das contradições,

assisto o meu elenco

na passividade de plateia 

que sou.

 

Figurante do que sinto

enceno os dias

na arena de coadjuvantes

que protagonizam

o sonho improvisado desta ficção.

 

Cômica caixa cênica

em suspensão de descrença

que o auditório não vê,

embora pense que creia.

 

Parede imaginária

no invisível

deste pedaço de vida

a confundir o elenco.

 

Palco de invasores sentimentos,

nas coxias intransitáveis da alma,

que não vêm à cena.

 

Mundo lúdico enredado

na rotunda da emoção.

Quarta parede a impedir o sim

quando a plateia

só enxerga o não. 

Páginas 22 e 23

 

AS ESTAÇÕES


Olho pras ranhuras no céu das madrugadas de setembro

e me pergunto quando chegará a primavera.

Nos meus sentimentos

algumas flores que não têm vingado

e então culpo as estações

por esta falta de cor no que avisto das coisas.

 

A alma fria do inverno

aguarda um tempo mais ameno.

Quem sabe as tempestades que virão

farão de mim algum verão qualquer.

 

O dia a pino faz da noite esquecimento.

A escuridão é uma hipótese

no espírito ao meio dividido

pelas sombras de um sol insuficiente

para aquecer-nos por inteiro.

 

Há um claro no outro lado do escuro

assim como é certeza

que sementes dormem pelas estações

na espera

de vingarem exclusivamente na primavera.

 

Uma rebelião de cores e cheiros

que invadem os jardins

e tocam os homens que dormem

no desconhecido das sensações.

 

Dos trens, olhares inquietos observam,

no que passa, a natureza que se move.

Páginas 24 e 25

 

A TEIA

 

Às vezes choramos

porque a alma dói

tudo aquilo

que o corpo já não sente.

 

Temos planos

adiados pelos anos

e sonhos cancelados

pelos desenganos.

 

Tramamos o dia

como quem a teia tece

à captura de si.

 

Entre os instantes,

a vida, por acinte,

pauta utopias

para a ordem do dia seguinte.

 

Mas mantemos calma

achando que temos alma.

E será ?

Página 26

 

BALUARTE

 

Debate-se um poema em toda alma presa.

Quando é bem demarcado, às vezes não tem rima.

Se tem um grande tema, falta-lhe a beleza

que exige o achado pra ser obra prima.

 

E o artista a procurar a arte de grandeza,

sabendo que a procura é o que ilumina,

se perde a meditar, à caça de sua presa,

qual louco atrás da cura para a própria sina.

 

Então em instante raro onde a poesia,

qual deusa de um castelo, presa em baluarte,

clareia-lhe o faro como a luz do dia

 

e o artista vira um elo para outra parte

e o verbo de tão claro a alma contagia

enfim, o imenso belo que só há em arte. 

Página 27

 

FRUTO PROIBIDO

 

No perigoso precipício da véspera

do cinquentenário do que fui

a flor que acena flui

involuntários sentimentos

de uma vida que jamais senti.

 

E urge amar o inusitado

neste estado de penúria

que é o tempo em marcha

como a flor que surge

e brevemente passa

no jardim que ficará.

 

Terminada a pressa,

o futuro incerto

de quem já viveu o permitido

e vê, à margem de um abismo,

um labirinto sem fim.

 

Agora eu não sou flor,

não sou jardim,

sou a semente que dormia

renascendo como o fruto proibido

mas que sempre esteve em mim.

Página 28

 

GRITO AUSENTE

 

É indivisível o que sinto.

Uno, pra sonhar, às vezes,

minto.

 

Pra viver, nem sempre sonho

escondendo no olhar o sentimento

como se o momento

fosse um vil compartimento

de um enorme labirinto.

 

E o futuro

alardeador do infinito

é improvável,

eu só pressinto.

 

Então me guardo no silêncio

indivisível nesta imensidão

de sentimentos do presente

que aguardam o momento

para a liberdade

de um intenso grito ausente.

Página 29

 

IMENSURÁVEL 

 

Para fugir do medo

adornamos algumas mentiras belas

que nos fazem

heterônimos do anonimato

que sentimos.

 

Do cansaço do tempo

trazemos a saudade do bulir

nos proibidos, nas vergonhas

que em contraste com a solidão

germinam o prazer das coisas.

 

É como se o bem e o mal

a se mesclarem,

numa coisa una,

imensurável,

fossem se  compondo

no que somos de intolerável.

 

Assim,

pérolas e porcos

estercam a busca

da verdade vislumbrada

que a mentira ofusca.

 

E do inesperado,

parido deste prematuro

que o instante instala,

o brado olhar a germinar

o grito que se  expande

enquanto o sentimento cala.

 

Mas pra fugir do medo

atiramos o olhar a qualquer coisa,

violando qualquer um,

inibindo a violência

que se instala

nesta síndrome de pânico comum.

Páginas 30 e 31

 

INFINITO

 

Sobre uma parte

do que sei, escrevo

e se não sei, me calo.

E do que escrevo,

uma parte eu nem sei,

e mesmo assim, às vezes, falo.

 

Sobre o que sinto

uma parte escrevo

pra tentar saber

o que de mim eu minto.

 

E nunca sei se escrevo

a parte que me cabe

do que sei de mim

e , às vezes, calo

pra fingir o que não sinto.

 

E sei que do que sei,

à parte, no que escrevo,

parte não me cabe

já que eu só pressinto.

 

E no que sinto deste pressentir

há o conflito entre o silêncio e o grito

transformando o poema

em linguagem de infinito.

Páginas 32 e 33

 

JARDIM DO ÉDEN

 

Em meu jardim

as flores espiam

o meu olhar parasitário

a espreitá-las sem vê-las.

 

Observado

fujo a face ao horizonte

que em prosopopeia

se escandaliza com os homens

que se perdem nos jardins

a procurar um belo

que não podem ver.

 

No dia a dia

noite a dentro

enterram-se

sementes mortas de si.

 

E vigiam a aurora

temerosos do que pressentem

enquanto a escuridão os contém

pra no outro dia sem medo

se perguntarem se um dia

verão as flores que afloram

lá no jardim do além.

Página 34

 

LÁGRIMAS SECAS

 

Quando eu for embora,

a tampa da minha panela preferida,

o bule, o cheiro do café,

em minha casa permanecerão por mais algum tempo.

 

O meu cão, certamente,

a esquina espiará, à minha espera,

nos horários de minhas rotinas.

 

As minhas lembranças, cartas,

quinquilharias, que a mim eram riquezas,

boçais entulhos a serem incinerados virarão

aos meus descendentes,

que iludidos em suas buscas,

me esquecerão

assim que as lágrimas secarem.

 

Insistentemente alguns versos

determinarão a minha eternidade passageira

a um pouco mais além.

 

Oh! Insuficiente poesia

a burlar a alma dos outros

desdizendo as verdades,

invertendo as mentiras

para encontrar alternativas

que não servem pra ninguém.

Página 35

 

LIVRE ARBÍTRIO

 

Algumas ruas cortam o meu coração

e se encruzilham na imprecisão

dos inexatos sentimentos

que permeiam  este procurar.

 

Perco-me abstrato

no concreto das contradições

que cobram os degredos

que não posso cumprir.

 

Caminhos demarcados

por passados sem lembranças

e arrependimentos sobre fugas

que impediram o que não se viveu. 

 

Futuro de vento

que nos deixa para trás

qual a árvore

que não cede ao vendaval.

 

Raízes imóveis

de um presente qualquer

ingenuamente predestinado a passado

e submisso ao que é determinado

pelo que virá.

 

Descaminhos que se mostram

em acenos pra desassossegos

das mentiras dentro das verdades

violando os arbítrios dos que pecam

pelas liberdades.

Páginas 36 e 37 

 

O ABUTRE

 

Cacoetes de inspiração

impõem os versos

sobre o que em mim

degrada a madrugada fria.

 

Anestesiado pela solidão

lido com sonhos

que são coisas

que deturpam

uma sonolência que dói.

 

Movimenta-se sorrateiramente

o peçonhento sentimento

de náusea

e o poema

é atirado para fora

como uma gosma insossa

transformada em flor.

 

Alimento-me de mim

como um abutre que se nutre

de dor               

e que degusta o estranho belo 

que há no verso a se compor.      

 

Ideologias putrefatas

gerenciam

minha alma involuntária

de poeta ditador

que no poema

só vasculha a liberdade

e tem no sonho da verdade

a escuridão

a transformar em resplendor.

Páginas 38 e 39

 

O BAOBÁ

 

Pela janela, o olhar respira

o horizonte que não pode ser tocado.

 

O achado de cada esperança

mantém o prisioneiro

visionário do que não existe.

 

Na desordem dos objetos

a cela de sentimentos que emboloram

e decoram as paredes intermináveis

deste imaginário.

 

Esperanças cansadas

contagiam os dias

com ideologias

que não foram arquivadas.

 

Enraizadas

ideias daninhas

que queimam.

Toras que não frutificam,

obsoletas

como baobás de alma.

Página 40

 

O BOBO

 

Sereno mato a minha dor

e estrangulo quem não sou

para saber de mim.

 

Acato a solidão que me detém

na multidão extasiada

que maquia os seus prantos

com comédias sobre um nada

que jamais tem fim.

 

O roteiro é um silêncio

de caras e bocas que se movem

entre as farsas de um amor ruim.

 

Da tragédia ao lírico, um instante.

Script incerto

onde o tempo é da morte

o seu fiel amante.

 

Um bobo cortejado pela corte

que sorri da pantomima

que dispersa o foco do seu drama

pra fingir que é ironia

a traição do coração que se comporta

pra esconder o que de fato ama.

Página 41

 

O CAMAROTE

 

Do camarote

observo as aflições

no camarim.

 

Alguém que teme

se representar

maquia em prantos

uma máscara de risos.

 

A peça é parte arredia

do contexto de paixões intensas

que se quebram em instantes

desfazendo as emoções dos outros

para sempre.

 

Alguns amores

despencam em contradições

e se arrebentam no tempo

como se jamais tivessem existido.

 

O público a compor a cena

no cenário não se encontra

e vaia a cortina que despenca

denunciando o ator

que maquiado

no espelho

estava

nu.

Página 42

 

O CIRCO

 

Do alto do meu espetáculo

observo na plateia

o que não quero ser

e represento pros que aplaudem

o teatro do que somos

nas coxias onde estamos,

mas mostrando um picadeiro

que não quero ver.

 

E assisto as reprises dos meus sonhos,

enfadonhos sentimentos

de um palhaço que se pinta por dentro

pra se esconder.

 

Lá fora de mim,

a estrada que procuro pra não ser

o espetáculo que agrada

aos transeuntes que me entornam

boquiabertos à espera

dos meus atos

pra sentirem tudo aquilo

que não podem crer.

 

No entorno do palco

as revelações esparramadas nos olhares

dos que espiam as esquinas do que represento

pra plateia, que patética, sorri.

 

Ah! Vulgares vidas que vagam

vivendo as várias vadiagens do artista,

que volúvel,

vê no vago

um vazio intenso. 

Páginas 43 e 44

 

O CONDENADO

 

O sol a incinerar

da noite os restos dos sonhos

crema as melancolias

desta insônia sobre o nada

em quase tudo que incomoda.

 

O pedaço de corpo

a me conter

contém o que da alma

em mim pressinto

nesta estrada que me molda.

 

Latente vida

que da morte

escapa

mais um pouco.

 

Vidente em mim

um sóbrio insano

se transforma

em mais um louco.

 

E um caminhar que oscila

entre a queda e a correria,

a me levar a outro lado,

faz de mim o que não sei,

o que não sou,

como o silêncio

faz do grito um condenado.

Páginas 45 e 46

 

ON LINE

 

Amordaçado pelo senso comum

eu meço as mágoas que me moldam

meditando sobre o medo

que decora o meu jardim.

 

Imaculados sentimentos

não suportam o poema ao vivo.

Preferível o poeta morto

no quintal esparramado entre cães e fezes,

com vizinhos que vigiam a inspiração.

 

On line

a vida em ânsia

pulsa intolerâncias ao que é afã.

 

Conectar-se ao que é de fato

intimida o sentimento imediato

como quem tem medo de tocar no que morreu.

 

E navegar tem riscos.

As tormentas absorvem

os que invadem nosso inusitado.

 

O mar está além do que é possível se ver.

Abstrações e buscas se misturam

nos caminhos deste desbravar.

 

Mas nem tudo que se move é terra.

O sol é só a luz possível

pra quem vê o tempo todo a escuridão.

 

E o tempo sentencia o libertário à própria sorte.

A liberdade vira um risco, já que livres,

vulneráveis mais ficamos para a morte.

 

E libertinos, libertamos nossos medos

meditando contratempos

como a flor que ingenuamente

não suporta o seu jardim.

 

É como um poço,

um precipício de vontades.

Labirinto de desejos que se mesclam

ao suicídio das raízes

que pra flor é uma dor que não tem fim.

Páginas 47 e 48

 

O PARALELEPÍPEDO

 

Sujo, observo no clamor do dia claro

o que escorre no olhar que sente medo.

Na rotina da prisão que me acalma

algumas rugas se contorcem pela  face

enquanto a alma ironiza o meu segredo.

 

Um homem duplo que não é ninguém.

A vida múltipla apagando o personagem

de um teatro sem paredes

que é detido pelo palco,

libertino, porque lhe convém.

 

O sol não absolve o pecador

que a escuridão contém.

Os heterônimos escapam pelos versos,

sorrateiros,

enquanto que o autor é condenado

pelo medo que o detém.

 

O poema é um prostíbulo de emoções histéricas.

Absorve nos lirismos fantasias homéricas

que permitem ao poeta se representar,

meio a figuras, sobre o que de fato é.

 

A rua indócil é um esconderijo

para aqueles que se perdem.

O coração, reencontrado,

é um paralelepípedo que teme.

Página 49

 

O RETRATO

 

O dia acorda

atropelando os homens

estacionados

na noite.

 

As mulheres

enxugam seus himens

que choram

a solidão da pressa.

 

O tempo

escancara guizos

de velocidade

sobre nosso lento olhar

cambaleante.

 

O instante

é que não para.

O tempo

é um retrato

do que não restou.

Página 50

 

OS LÍRIOS DO CAOS

 

Aguardamos pelos lírios

que virão do que sobrar

do caos.

 

Demolidos resistimos

indecisos na ambição

que nos obriga à solidão

do nosso estágio insosso.

 

Devaneios apunhalam

nossa alma sã.

E em sã consciência

acatamos a demência do dia

na ordem desconexa

desse desamor.

 

Por entre os obstáculos das ruas

os tropeços nos detritos do que somos,

nos delírios, no que estamos.

 

Oh! Sombra do sonhar em ser

sentenciando-nos a flagelos

sobre o indizível.

 

E condenados ao inevitável

evitamos os adornos da razão,

que apunhalam com os fatos

nossa ordem de fardos

na desordem destes lírios que virão.

Páginas 51 e 52

 

PONTO DE PARTIDA

 

Tenho saudades de lugares por onde não passei,

lembranças de pessoas as quais não conheci.

Procuro versos que jamais farei,

poemas sobre o que não sei

e conto coisas sobre o que não vi.

 

Ando sempre pelas mesmas ruas

vendo as mesmas caras e coisas

como se no ciclo da vida perdido estivesse

e em círculo voltasse ao ponto de partida.

 

Talvez o medo impeça

o arriscar-se a novos caminhos.

As direções, múltiplas, assustam

e eu me escondo no quintal

de um endereço qualquer

para me proteger de mim.

 

Vejo as pessoas passando

e me pergunto sobre os seus destinos.

Serão mais belos que os meus?

Do outro lado do planeta eu seria outro?

Em outro tempo os dias seriam mais amenos?

 

Acordar e escarrar o amargo da noite

para vasculhar o labirinto do novo dia

enquanto reordenar a casa

à procura do que não sabemos

virou uma rotina incurável.

 

E a poesia, qual peçonhento inseto de alma,

colide as sensações entre os vazios e as inspirações

para versificar o tédio de cada esquina,

de cada insônia e amenizar o tempo que nos elimina.

 

Os lugares por onde passei,

as pessoas que passaram por mim 

fazem parte dos meus esquecimentos

e alimentam as lembranças

sobre os seres que já fui

e me arrastam para o que serei

em decorrência do que sou

exclusivamente neste instante,

único, impreciso e irremediável.

Páginas 53 e 54

 

REGÊNCIA

 

Pela janela,

à caça de Deus,

o olhar

que no horizonte esvai-se.

 

Das certezas da vida

às dúvidas que a morte impõe

(ou o oposto disto),

uma réstia de tempo

a nos contemplar

na inexatidão da espera.

 

Surtos de um delírio

demarcado em calendário

religiosamente cristão,

mas impreciso.

 

Meticulosos lirismos

intercalados em risos

ritmizam versos brancos

sobre relógios que regem silêncios

qual adornos de alma.

Página 55

 

SACADA

 

Na porta

sombreada em sol

ao chão

vejo a saída

para o impreciso.

 

Improváveis versos

saltam-me na mente

como um repente

que nunca será.

 

Um cão,

que no tapete dorme,

causa inveja

aos meus sonhos

que sonambuleiam

numa correnteza

que não cessa.

 

E turbulento

fecho a porta

pra matar as sombras

que me guardam da sacada

do meu próprio

olhar.

Página 56

 

SOBERANOS DO HOJE

 

Ilusórios do tempo,

olhamos o ontem com desdém

vislumbrando no horizonte

um incerto além.

 

Soberanos do hoje

construímos coisas

demolindo paixões.

 

Em pressa instintiva

aceleramos contra nós

um tempo que mata

contaminado de ilusões.

 

A felicidade

sempre premeditada

esvai-se no agora

das coisas.

 

Uma vida de tédios

entrecortada por amores

disfarçados nas dores

que disparam risos.

 

Frágeis sentimentos

soberanos no instante

deste denso eterno

de tormentos e guizos.

Página 57

 

SONETO DA ETERNIDADE

 

Eu quero a vida inteira à minha frente

que pode ser apenas um segundo

vivendo uma paixão intensamente

indiferente às razões do mundo.

 

Porque viver é sempre um caso urgente

se desabrocha um amor profundo

que avassala e embriaga a mente

mesmo que a dor se instale lá no fundo.

 

Que a vida inteira pra fazer sentido

numa alquimia de imortalidade

não pode ter nenhum sonho contido,

 

pois quando o amor é pleno de verdade

um só instante dele bem vivido

faz do momento a própria eternidade.

Página 58

 

SONETO DA PAIXÃO CONTIDA

 

Não quero mais conter o amor que sinto,

e declarar ao mundo o meu engano.

Só é feliz quem deixa livre o instinto,

pra libertar um grande amor profano.

 

E sei que sou fiel só porque minto,

já que meu peito infiel e insano

planeja a fuga deste labirinto

que é o coração de todo ser humano.

 

Quem busca ou teve um amor eterno

nunca viveu intensamente a vida.

Conteve amores e viveu no inferno,

 

que a maior grade é o medo da partida.

Verão de amor um dia vira inverno

pra primavera da paixão contida.

Página 59

 

SONETO DO AMOR DESFEITO

 

O imperfeito amor que avassala

de infinito o coração em chama

e causa dor e embaraça a fala

atormentando o peito de quem ama

 

é o mesmo amor que a criança embala

quando recria num brinquedo um drama

ou o amor que o tirano cala

pra iludir e por a terra em chama.

 

É, com certeza, o sentir mais forte

que pode haver pra embriagar o peito,

pois gera vida e depois a morte

 

já que depois se torna rarefeito

e o sentimento que era a grande sorte

vira um vazio coração desfeito.

Página 60

 

SONETO DO AMOR IMPERFEITO

 

Não quero mais buscar o amor perfeito

pra camuflar o sentimento em chama

e amortecer o que me dói no peito,

a mesma dor de todo ser que ama.

 

Que amar assim, eu sei, não é direito,

pois todo peito preso nesta trama

adoecido faz do olhar um leito

pra adormecer a fonte deste drama.

 

Vou procurar amar só o instante

um amor maior, porém um passageiro

tão transeunte quanto o amante

 

que tenha amores pelo mundo inteiro

e ao invés da dor o peito sempre cante

o imperfeito amor que é o verdadeiro.

Página 61

 

TEXTO AO VIVO

 

Espio bem o transeunte sempre igual

que me espreita da calçada

temeroso do meu mal

atrás do verso que não sai.

 

Pela parede imaginária do meu muro

eu escondo o meu escuro

a me conter do que pressinto

semelhante ao que deduzem que não sou.

 

E represento,

escondido atrás de um verbo insuficiente,

as mazelas que me cospem no sorriso

e me imponho impreciso pra plateia

que espera um desfecho

que alimente a ilusão.

 

E em outro ato

o limite entre o invisível e o fato

contamina o sentimento coletivo

e faz da vida um texto ao vivo

pra iludir nosso roteiro

no teatro da razão.

Página 62

 

UNIVERSO PARALELO

 

O medo sobre nada

a consumir o dia intragável,

excessivo.

Nas relações, o impreciso

das telas que nos distanciam

e alimentam a deformação do riso.

 

Em meus e-mails o contato insosso

de combatedor

que morre em seu esconderijo.

 

Paralelo ao que vejo há o que existe.

Virtual, não tenho alma

e posso ser o que não sou

sabendo que não são

os que rodeiam

a janela que me esconde.

 

Os homens, abstratos,

se percebem

coagidos

quando param no farol.

 

Olhar de lado e não se ver,

não ver o outro

que também é consumido

sob o mesmo sol.

Página 63

Paulo Franco