PAISAGENS DO OLHAR
(2001)
Alpharrabio Edições
“Mas o amor não podia ser.
Inverno não é tempo de amora.
Como pode o broto florescer
Com a neve caindo lá fora?”
Bertolt Brecht
A POESIA COMO PÃO DO ESPÍRITO
Em Paisagens do Olhar Paulo Franco demonstra que vem aprimorando seu trabalho poético. Seu canto é expressão do desencanto reinante nessa sociedade de exclusão. Mas como todo verso tem o seu reverso, é também clamor de esperança de quem “fingidor se entrega neste guizo/ e afaga a dor,/ que camuflada / se transforma em riso.”
Paulo Franco abandona a rima fácil e, como um artesão da palavra, burila seus versos como quem contempla um “poema que parou na areia infinita dos dias”.
“Não há lirismo/ quando a vida/ é uma sobrevivência.” E, no entanto, ele ergue a sua voz, arauto de inquietações e ânsias, em busca da arte como expressão mais viva e profunda de nossos sonhos e utopias.
Paisagens do Olhar é uma obra, não só para ser lida, mas também para ser bebida, como quem toma um bom vinho, símbolo de sangue e comunhão.
Nós que lutamos pelo mundo novo, pelo homem e pela mulher que já não precisem dicionarizar a palavra ética, sabemos que a poesia é o pão do espírito, essencial para perceber as flores entre tantas pedras.
Paulo Franco é o jardineiro que cultiva delicadezas, mas também o talhador que faz da matéria bruta da vida um hino de indignação e conquista.
Frei Betto
NOTA DO AUTOR
Fazer versos é minha profissão de pedra. Um burilar nas emoções como se fossem coisas. Movediças luminosidades em meio à escuridão. Um metafísico dedilhar nas sensações. Não trago, contudo, uma novidade técnica. Despretensioso de revoluções formais, o meu versificar emoldura o lirismo do meu tempo e questiona os seus conflitos que se atritam com os nossos ideais. O poema, nas minhas PAISAGENS, é o reflexo DO OLHAR que tenho sobre os homens e suas ambições. Não condecoro a inspiração divorciada da razão. Só há lirismo quando a mão impulsionada pelo sentimento executa a Arte de reflexão. Não sendo assim, é desvairismo. E a humanidade não tem tempo para esperar que o grande hospício da existência humana encontre cura para os devaneios de qualquer filosofia vã. Faço versos como quem procura a relação de si com a vida e com os outros. Ciente de que sou um semelhante ao que me desagrada. Sabendo que não sei me recompor o suficiente para impor receituários. E não basta receitar que não há mais receitas. A letargia já respira o ar do sonho do milênio novo. A poesia sobreviverá. Os liberalismos todos, os modernismos tolos esculpiram a nossa prisão de opinião. A arte já não sabe se é livre ou libertina. Nada de Dadá. Nada de alucinação. Artesanar a Arte é cumprir o compromisso eterno de buscar o belo. Ainda que feio, ainda que tardio, se faz sempre necessário. Porque somos falhos. Simbólicos. Navegadores do tempo em qualquer tempo. E temerosos de tudo o que não vemos. Criamos objetos, máquinas, deuses ou arte. Tudo para passar o tempo ou o medo enquanto vemos no retrato um a nova geração que parte. O que esperar ou o que fazer? A Paisagem do dia pode oscilar no instante. O Olhar que impomos sobre o mundo reflete uma outra paisagem que não é exatamente a que nos vemos ou a que esperamos ver. É desta ótica e nesta multifacetada ilusão que a criação condensa o verso e nele o nosso necrotério interior. E a inspiração é só uma reflexão inconsciente sobre a consciência que queremos ter do nosso abismo, e que aflorada, até por não saber, chamamos de lirismo.
Paulo Franco
A MÁSCARA
Estranhamente posamos
sob um aspecto qualquer
da expectativa coletiva,
escravizando-nos
no corriqueiro cumprimento
do que é a nós determinado.
E não vivemos mais além do ego servil
exposto aos olhares indigestos
que espreitam o estático.
As aparências
impõem funções,
sanções, neuróticas reações
e deterioram as emoções.
Senso social maléfico?
Dialética?
Ética?
Ou réplica do caos coletivo?
Máscara fotográfica
da escravidão dos sentimentos,
encenação anômala
de fictícia missão vulgar.
Emoldurável pesadelo
a arrastar-nos nas relações
que reeditam o pânico
e mistificam a libido em meio ao sonho crônico.
O que esperaria o coletivo
para as representações
do roteiro de hoje?
páginas 13 e 14
A MEDIDA DO SER
Evoluem em nós
os nós que nos permitem
perguntar.
E das perguntas,
quantas grutas surgem
neste procurar?!
E nos descobrimos
procurando o que não temos,
as respostas pras perguntas
sobre o que não vemos.
E vem à tona
a medida do ser
redescoberta,
como a natureza,
numa flor
a se desabrochar,
simbolizando a mão de Deus aberta.
E neste achar
outra procura brota
e deste broto
um possível novo aborto
a nos alertar sobre a ilusão
deste renascimento
que é o florescimento
do plantio da eternidade
a gerar a evolução.
página 15
ANDARILHOS DO TEMPO
Pela areia infinita dos dias
vasculhamos, andarilhos do tempo,
grãos de felicidades
que se perdem na desesperança
que rodeia o coração.
E arrastamos lento olhar
pelas entranhas dos sonhos
que adormecem na espera
qual a flor que semeada não vinga.
Verso de poeta envelhecido,
passado da hora da inspiração,
metonímia pobre
a se perder no esquecimento
como o amor não declarado
em uma vida de paixão.
Tema frio de vida fria.
Quase todo sentimento
gira em torno
de paixões que não vingaram.
O poema parou na areia infinita dos dias,
andarilhas rimas do tempo,
desesperançadas, passadas da hora,
proibidas paixões
que deformam a existência
numa espera de envelhecimento
e dor.
página 16
ARREDIO
A palavra, arredia,
atrás do muro,
demolida,
escondeu-se.
A palavra desaprendeu a luta
e o poema desmoronou-se.
O poeta desaprendeu o verso
e a palavra enclausurou-se.
E o poema,
arredio,
de entulhos
não se deixou construir
pelo poeta que perdeu a palavra.
A palavra do poeta,
no poema,
partiu-se.
página 17
ARTE
Na efemeridade dos atos
as artes dos homens
marcam seus momentos
de eternidade prematura.
E no tempo em que criam,
distraídos na inspiração,
não percebem que apenas as obras
um pouco eternas são.
O resto é o eterno de si,
sempre prematuro
e passageiro.
As artes, os edifícios,
os metais, os muros,
as paixões inviabilizadas,
as pichações.
Os amores que morrem,
virarão arte?
página 18
A RUA DOS MEUS SONHOS
Pela rua da minha infância
passam meus pais apressados,
atropelando os meus momentos,
agredindo minha esperança em flor.
Pelas ruas dos meus sonhos
escorregam dos meus lábios
medos que se esparramam
na depressão do lar que aflige.
Pelas ruas dos meus intentos
adormeço a soluçar os meus castigos
de silêncio em quarto escuro
por pecados os quais não cometi.
E nos meus sonhos ouço clássicos
que acalantam os meus pais
que não podem ser incomodados
em seus pesadelos de pedra e de dor.
Nos meus sonhos adormeço
vasculhando a nota musical perfeita
pra enfeitar as esperanças
desta rua que não volta mais.
E acordo meio à madrugada
procurando em sonâmbulos sorrisos
as brincadeiras que meus pais imaginaram,
mas que o tempo já deteriorou.
E quem sabe os meus pais,
num desatino,
pelas ruas dos seus sonhos
sonhem que seus pesadelos
eram sonhos
de um brinquedo
que no eternamente
se pode brincar.
Páginas 19 e 20
BANDEIRAS DO CORAÇÃO
A ponderar me ponho
acerca do sonho de cada um.
Ponho-me a sorrir aos semelhantes
sem saber o que precisam
no que digladiam em suas angústias.
Olhar deserto
a vagar na insegurança
de procuras falsas,
insanamente vagas,
mas que devem emoldurar
discursos verdadeiros.
E não sabemos
se somos os curandeiros de nós,
os profetizadores
de nossas futuras dores
só perceptíveis nas orações
e histerias.
Tentamos cantar,
mas ponderamos o sonho
e o que sei que sai da fala
é falso discursar bisonho.
E o coro desafinado
de nossas ambições,
desafiado, orquestra-se.
Só somos alguma coisa
na soma dos nossos “ais”.
Só somos o que sonhamos
no coral de nossos ideais.
E estas ideologias
sacodem as bandeiras dos corações,
animam as pulsações
da difícil esperança
de quem não pode perder a ternura,
mas que se endurece
a cada sonho que perdura.
Páginas 21 e 22
CELESTIAIS
Desabafo o olhar
na janela
sem poder sorrir.
O ir e vir da rua
gera um vai e vem
em meus desejos
enrustidos.
Há um harém de sonhos,
há um poeta eunuco
no esconderijo do lar
que desnorteia a dor.
Passam os cães e os bêbados
instintivamente animais.
Passam os meus ancestrais na rua da minha janela
onde não me encontro mais.
Tempo póstumo,
pistoleiro dos instintos,
passageiro desabafo
que se esconde
meio aos artifícios
dos que exercem os ofícios
celestiais.
Página 23
COMPASSO DE ESPERA
Limitadores de nós
detemos a inspiração deteriorada
pelos lapsos de razão
que cometemos.
O mormaço dos dias
a machucar-nos.
O compassar da espera
a maestrar
nossos acordes.
Construímos versos
ou casas eternas
que abriguem a vida
provisória.
Tudo é passageiro
e paridor do medo.
Presente que não vemos.
Precisamos
do que éramos
na imprecisão
do que seremos
ou somos.
Página 26
CORAÇÃO
Tenho um coração
saltando boca a fora,
uma emoção
que saltitante não tem hora.
Uma lucidez
metálica
repleta de um lirismo
denso.
Meu coração arcaico
coagido
é modernidade.
No verso,
uma metáfora cansada
já virando metonímia
desapercebida
pela rotineira pulsação.
Coração
que não tem pressa
pra se decompor
enquanto se compõe
qual uma orquestra de instantes.
Estática prisão de sensações,
inviolável
de instável que é.
E peito a dentro,
é só o centro
de uma vida que cansa.
Tímido, recolhido,
cumpre tão somente
o seu dever, pulsando,
de me manter em verso
a vida repensando.
Página 24 e 25
CORPO DE DELITO
Tem presunto novo na calçada,
sangue fresco nos jornais
e um campeonato a mais
pra iludir a multidão desempregada.
São mendigos que tropeçam em autoridades
e risos que despencam das sacadas.
Sacam os favelados os contrastes das cidades
com crianças que já nascem assaltadas.
E gente branca
e gente preta
a premeditar
alguns delitos.
Delinquentes que acenam
para os carros que se trancam
na velocidade dos gritos.
Tem desempregado novo na cidade,
mais algum rebento a viver de esmola,
corrupção na mão de outra autoridade
que colherá prisão por não plantar escola.
Página 27
DESPREZÍVEL
Efêmera
a vida
com pretensões de eternidade
caleja o coração
que incansavelmente pulsa
o instante inevitável.
E o tempo,
previsível,
mancomunando a morte
desprezível
a deter-nos na incerteza
deste interminável
invisível.
Página 28
DILEMA DOS DIAS
Há que se acordar
e caminhar o dilema dos dias.
Há que se adiar o riso e as agonias.
Mastigar o ódio como quem
tritura o próprio guizo
e se seguir diante de incertezas
como se o viver
não fosse mais do que preciso.
Há que se ter e que se ver
que o ter não basta.
Há que se ser e se conter
maquinalmente como o gado pasta.
Há que se esperar do tempo quase tudo
vendo-se que resta do momento o futuro
e que o tempo a passar-nos sempre mudo
em silêncio ultrapassa o nosso escuro.
Há que se ver que a morte vem
e a vida em vão se vai
e da angústia
a gente assim se protegendo
vai se fazendo alicerçar de astúcia.
E se fingindo de coragem neste medo
segredamos as verdades que escondemos
nas mentiras que pintamos no segredo
das respostas ilusórias que jamais sabemos.
Página 29
EFÊMERO GRITO
Oh! Infelicidade carcerada
nas almas que se desesperam…
A vida a debater-se nas faces, apagada
na escuridão dos olhares que esperam.
Há uma loucura exposta
no cárcere do que não foi dito
no subjetivo que se mostra
no concreto deste efêmero grito.
E quase tudo dói
na abstração incômoda
deste descontrole insano.
Sentimento que destrói
esta ilusão anômala
que espelha o nosso engano.
Alucinações que se compõem
em perigosas verdades,
feridas que nos expõem
em vexatórias insobriedades.
Oh! Alienação destas mentiras!
Ilusão transtornada de invisível
a se multiplicar em violentas iras
que se debatem diante do intransponível.
E a felicidade embalsamada
em fugazes irrealizações
esconde-se da visão do nada
destas alucinações.
Clínico delírio
a conter a alma.
Mímico martírio
a manter a calma.
Há no olhar uma procura
encarcerada de um silêncio que corrói.
No riso, antagônica tortura
estampada numa solidão que dói.
Páginas 30 e 31
EMOÇÃO
Caem os muros
que separam os sistemas,
mas não caem as cercas
que dividem os quintais.
Mas pulsa ainda a emoção,
que decomposta, luta.
Fria, calculista,
num mundo de causas premeditadas.
A emoção, altista, está danificada.
Emoção que é objeto de rua,
uma coisa na estrada,
uma criança com caricatura
de pistoleiro da Candelária.
Emoção que morre nos faróis,
violentada atrás dos muros da mediocridade.
Emoção sem caridade alguma,
enrijecida pelo medo
e enraivecida pelos telejornais
que nos reprisam violentados.
Multifacetada emoção
pela globalização dos sonhos
que multiplica as fronteiras
dos homens carcerados em seus corações,
robotizados pela necessidade
da sobrevivência vã que se procura
em um momento de dor
onde a emoção é um rugir
que não tem cura.
Página 33
EPIDÊMICOS
Em minha porta
os protestantes digladiam-se
numa santa inquisição periférica
enquanto ouço Titãs.
Satãs são condenados
prisioneiros da cristandade
enquanto que os desempregados
cambaleiam indecisos
em suas carismáticas aflições.
Da janela vejo os desesperos
globalizarem-se.
Espera-se pelo fim dos tempos
que o dia seguinte não traz
e levantam-se perdidos os pagãos
pedintes do emprego inquisidor
que não existe mais.
E no outro final de semana
um outro fim de mundo,
uma outra inquisição do capital que mata.
Em minha porta
beatos e bêbados berram
numa evolução de pedra,
neutralizados pela falta de ilusão
nestes epidêmicos cárceres
que os impedem de sentir
a escravidão.
Página 32
ESPERA
Espero por algo que não vem,
pelo dia seguinte,
pelo destino incerto
qual o descarrilhar de um trem.
Espero pela boa vontade dos homens,
pela contradição das profecias,
por um campo de girassóis
num canto da sala,
meio à madrugada e a poesia
enclausurada nas sensações
que o verso embala.
Espero como quem espera,
no deserto, a enxurrada,
no silêncio o grito,
na tristeza o riso, o mito
e na espera o impreciso
à beira de qualquer estrada
como se o abismo fosse o infinito.
Página 34
ESTIMAÇÃO
Desenho um pôr-do-sol
entrecortado por motores
e homens que dirigem dores disfarçadas.
Desenho uma embriaguez estatelada
entre as rimas
que se arrastam nas calçadas.
E uma criança chora
o festejar que já morreu
e sem saber porque
implora o cantar que esvaeceu.
Pinto um coração que dói
a dor de quem perdeu o animal de estimação
e risco a distorção desta cidade
sem espaço para a sobrevivência
do que é singelamente lindo.
E uma criança chora
sem saber o que perdeu
como o festejar do aniversário
do que já morreu.
Desenho o pôr-do-sol
neste incabível hoje.
Nino-me criança vendo-me ninar
tantas lembranças
de cantigas que estarão
adormecendo no eterno.
E uma criança anda
a vasculhar o que perdeu.
No coração, de estimação,
o animalzinho que estará
na eternidade da imaginação.
Páginas 35 e 36
FELICIDADE PRIVADA
Não sei se quero mudar o mundo.
Desconheço o lado certo da desigualdade.
Para o caos não há conserto
e o que é triste não será felicidade.
Busco insistentemente o belo deste feio caminhar
por entre os pedintes que perdidos
cabisbaixos desnorteiam-me
no pranto que escondem
nesta marretagem de valores
que não vale um poema
ainda que rimado em dores.
(Há aqui uma falha de ritmo.
Verso mal colocado.)
Mas continuo não sabendo
se posso cuidar do pranto
que enlameia o mundo desritmado.
Nem mesmo sei porque que todo mundo
não toma conta de alguém
pra que não haja mais ninguém
por quem se precise tomar conta
por ser um ser marginalizado.
O sonho alheio virou propriedade particular,
contemplativo na sacada.
Tomaram conta da terra, do céu, do mar
e inventaram a felicidade privada.
O pão é a mais-valia do dia.
A opressão é destituída
somente nos versos
onde ainda haja a poesia.
A vida? Uma bugiganga qualquer,
contrabandeada nas bolsas
onde os valores já não valem nada
e a igualdade,
que ninguém mais quer,
é como a alegria:
só mais um conto de fada.
Páginas 37 e 38
GRAFITES E MISERÁVEIS
Velhas canções repito
como se representassem o sempre
de um interminável conflito.
Vasculho antigas melodias
à busca de novas emoções
que não se concretizam
em poesias.
Os Hip-hops ofendem minhas sensações
enclausurando-me
em um jardim de pichações
e borram os corações
com horrendas decorações
niilistas.
Repito então as mesmas melodias
que me entediam à espera
do dia seguinte.
E desespera-se o olhar
à caça de um sobrevivente verso do caos.
Minha poesia esconde-se
em meio a grafites e miseráveis.
Espera pela metáfora da nova ordem.
Recusa-se a metonímias viciadas
por tendências marginais.
Miseráveis grafites
sustentam a depressão
deste palanque nosso
que picha a putrefação
do hálito.
Página 39
GRANITO
Morrendo pelas ruas
passo meio à massa
adormecida.
Faço com que o tempo
se desfaça
num silêncio
amarrotado pela vida.
Em minha mão
que acaricia um rosto
de granito
um grito de silêncio
emerge.
E divulgo herege
que por me mover
me encontro vivo.
Enquanto que morrendo
pelas ruas
passo
meio à massa enfurecida.
Página 40
IMPUBLICÁVEL
Tempo
que volta e meia
a me dizer
que a me levar
está,
assusta-me.
Tempo que temo
enquanto tento,
a sucumbir,
me disfarçar.
Devo assumir os velhos temas
deste precipício
e vasculhar as inexatidões
destes suplícios ?
Sobrevivo-me
um pouco mais neste silêncio.
Silenciar o que de mim aflora
vale o versejar que me consola.
Oh tempo!
Tema que em mim
procura esconderijo inviolável
para as aflições,
qual versejares de alucinações
de um poeta impublicável.
Página 41
INTEMPORAL
Sonho na calçada
do meu peito
uma metáfora qualquer.
Desmaios passam à minha frente
enquanto que acelero
os pesadelos dos meus sonhos
atropelados pelo pôr-do-sol
insosso.
Sonâmbulas esperanças
apoderadas por espadas
apunhalam flores
que imploram por sobrevivência.
Amanhecer alheio
a estas emoções
atormentadas
em um coração sem cor.
De cor
eu conto as cores
de um arco-íris intemporal.
E passa o temporal
que da calçada avisto.
Finjo que revisto
as minhas ilusões
e emociono-me
com um garotinho de brinquedo
descalço no meu pensamento
enquanto que observo da calçada
sem metáfora
este infiel momento.
Páginas 42 e 43
INTENSO VAGO
Contidas insobriedades,
desesperanças,
vencidos sonhos que se empilham
no intenso vago do coração.
Olhares que vagam
vazios
num vasto vasculhar
sem horizonte.
Um instante a mais,
uma sofreguidão
à luz do horário nobre.
Dominical angústia
nesta interminável véspera
da felicidade que não chega.
E vemos as reprises
do fantástico mundo dos homens
que lutam para dominarem-se
domesticando-nos no medo
com vorazes compactos
de suas guerras frias.
Página 44
INTERLÚDIO DO TEMPO
Interminável interlúnio.
Parco olhar a procurar-se
nesta vasta escuridão.
Interlúdio do tempo,
maestoso intercalar de instantes
nesta teatral composição.
Lento e imponente,
a iludir-nos,
o presente.
Futuro que não vem
enquanto passa-nos
Passado estático.
Intermúndio do tempo,
intemporal presságio.
Internúncio sem resposta.
Intenso intento de eternidade.
Maestoso procurar-se,
qual na partitura, a inspiração.
Interlúnio do tempo
no interlúdio dos instantes
a acalentar-nos
nesta interminável ficção.
Página 45
MAL ESTAR
O silêncio de cada cômodo
em cada canto de nós
a incomodar.
Onde estaremos
em cada quarto
das horas ?
O tempo que não passa,
e mesmo assim nos diluindo,
acirra-nos à velocidade,
vorazmente,
como se pressa tivéssemos
de nos depararmos
com o que quer nos sucumbir.
E como tudo isto fere!
Como falso soa
sobre os surdos risos
que nos distribuímos
enquanto que parimos
o minuto seguinte
deste carmático
mal estar.
Página 46
MEMÓRIAS VENCIDAS
O que se perde
por dentro do peito,
feito um sonho
feito rio sem leito,
são lembranças não vividas,
memórias vencidas
e não tem mais jeito.
E a saudade
dói
como um corte
no vazio
de quem vive
pela morte.
O que se perde
por dentro do tempo
é o sonho
sem ter rio ou leito
e a esperança é não ter vida
por se só ter ida
e se morrer como morre o vento.
E a verdade
destrói
flor em parto,
e o destino
é seguir
como um barco.
Página 47
MENINO VELHO
Agora
que a espera é lenta
o menino pede
pelo tempo
que não vem.
O agora
é lento demais.
Passeia pela vida
um sonho
e enquanto o menino passa,
passa a pressa,
passa o sonho
e passa o trem.
Outrora
a hora lenta
passou.
O menino velho
tenta na aurora
dizer aos olhos
que o sonho não acabou.
Página 48
MILÊNIO PASSADO
Não há nuvens entre os pesadelos.
Sorrisos estranhos
apontam para a esperança.
As placas
imploram pelo ser
humano.
O sonho foi salvo
sem haver engano.
Há apego
entre a vida e o sonho.
Não há desemprego.
Monumental felicidade
que até cabe
em tela impressionista.
Os poetas apelam
dadaisticamente
contra o lirismo comedido
das antigas gerações.
Os poetas comemoram
pelo versejar que brota,
pelo sentimento que não dói.
O homem sabe voltar
de sua mente insana
e singelamente sabe
que ainda ama.
Não há a morte globalizada,
a fome neoliberal,
as economias de extermínio
dos fundos monetários infernais
do milênio passado.
Páginas 49 e 50
MONUMENTAL
Há nuvens entre pesadelos.
Sorrisos estranhos
apontam para a desesperança.
As placas
já não pedem mais
o ser humano.
O sonho, deletado, não foi salvo.
Houve algum engano.
Há desapego
entre a vida e o sonho.
Há desemprego.
Monumental tristeza
que não cabe mais
em tela impressionista.
Os poetas apelam
dadaisticamente
por um lirismo comedido
e inexistente.
Os poetas lamentam
pelo verso que não brota.
O sentimento dói.
O homem não sabe voltar
de sua mente insana
e nem tampouco sabe
se ainda ama.
Página 51
MORTE COLETIVA
Ensinaram-me
que eu tenho um compromisso
com a vida,
um CIC,
um sonho
e uma senha
para estar vivo,
uma profissão
e uma procissão
a seguir.
Mas minha mão
minada
com bombas estragadas
apela pelo sonho
que a humanidade não vê.
A multidão
em minha volta espera,
a ilusão no peito emperra
enquanto o tempo espreita
e lento
a nossa morte opera.
Página 52
MUNDO PREDESTINADO
E o dia envolto
em irônicos raios de eternidade,
convida os poetas
a recuperarem suas inspirações,
os músicos as canções,
os jardins as cores,
esperanças, ilusões.
Amanheceu
e nada parou,
nem o elevador
ou a dor das misérias
de um mundo predestinado
a acabar.
Acabou o medo
e cautelosos olhares
espreitam o espetáculo do dia,
as crianças ensaiam novas brincadeiras
de uma esperança ainda tímida.
O coletivo vai passar
e no horário mais nobre
alguns vazios
serão alimentados
pelo capítulo
de uma novela sem fim.
Página 53
NO LODO
Gostaria de não ter idade
e poder me apagar
feito uma chama
inutilmente acesa
em uma sala vazia.
Ser um dia o dia
pra morrer de noite
e amanhã ser outro
pra morrer também.
Gostaria de não ser ninguém
e não estar em minha companhia
o tempo todo,
não pegar o trem,
não me sujar no lodo,
não estar aqui
e não saber se estive
em nenhum lugar.
Gostaria de acordar
e descobrir que a vida passa
no espelho
e que o pesadelo é estar aqui,
o tempo inteiro,
sem estar.
Página 54
NO SILÊNCIO DA PAZ SOCIAL
Pelas paredes do estômago
constituído de aparências,
brota a desesperança
de quem se pergunta:
Como morre a ilusão “per capita”?
No produto interno bruto
desta manipulação
de índices de inanição ?
Assistimos da varanda
mais um momento perdido,
mais uma vida perdida.
Enquanto o povo samba,
com gol é mais iludido
e a pátria toda é vendida.
E do altar da opulência
vemos urbanizações
moldadas na ignorância
de um povo que é retirante
do eterno drama da seca
narcisista e fabiânica
numa vida que não rima.
E viram seres drogados,
produtores violados,
dos santos, zés e da silva,
pras notícias populares
escorrerem nas calçadas
dos viadutos e dos bares.
E na cidade, outro dia,
cidadania não há,
há sol e muita agonia
nos sintomas desta crise,
sintomas de um Vietnã
pintado de paz social,
uma paz que mata mais
que qualquer escravidão.
Mas causa mortis não há:
É miséria, é ignorância.
O que mata é a inanição.
Páginas 55 e 56
NO SILÊNCIO DOS MARTÍRIOS
É noite e as notas
musicas não soam.
As aves pelo cais
não voam
e as avenidas não buzinam
histerias
na surdina das ambições.
E no silêncio dos delírios,
na sonolência dos martírios
algo dorme como quimera,
como o que morreu de espera
pelo que não vem.
E em desesperança
tanta insônia absoluta
perambula
e contra a morte luta
vasculhando bula
que indique fórmulas de boa conduta
que medique ou que modifique
a condução da vida.
É noite e a escuridão
passeia amarga
pelo céu da boca
e no silêncio dos martírios
sonolentos delírios ecoam
meio às notas pela cais
que entre as aves voam.
Página 57
O BANCO
Hoje, poderia ter feito planos,
contado estórias,
contado os dias
que arquitetam anos.
Poderia ter feito charme
ou me escurecido
em um depressivo verso branco.
Poderia ter mastigado calmante,
folheado minha estante,
mas hoje só fiz um banco.
Sim, um banco destes de se sentar,
um banco destes de antigamente,
feio,
que nem cabe no lirismo dos meus versos.
Hoje, poderia ter feito
qualquer outra coisa,
mas fiz um banco.
Amanhã, quem sabe faça
um jardim.
Apetrecho fútil
parido de mim
que não me encontro.
E interessante,
que nem mesmo preciso
de um banco.
Nem mesmo preciso-me.
Página 58
OBJETOS DE DOR
Amanheceu e não sabemos o que fazer.
O sol insiste, mas não abrimos a janela
e ficamos por mais algum tempo
para ver se o medo passa.
Caminhamos pela sala
na velocidade possível
de quem vasculha ao redor de si
em meio a objetos de dor.
A rua parece escurecida
por rotineiras iras.
As faces rangem os dentes
enquanto que sorriem
o sarcasmo
daqueles que cumprem pena eterna.
E nos descobrimos cumpridores
de nossas sentenças
em meio aos raios que nos transpassam
nesta escuridão
e debruçamos o pensamento na janela
à busca, de quem sabe,
um sonho que nos acene.
Amanheceu e o sol insiste
refletindo
o enfurecido sarcasmo
dos que cumprem esta pena que não passa.
E não sabemos,
objetos de dor,
o quanto suportamos
desta eternidade
vil.
Páginas 59 e 60
O CIDADÃO
O cidadão
olha o abstrato
e cata do discurso
o sonho
na oratória dialética
sobre o que não existe.
O cidadão inexiste
e defende o irreal.
O real inteligível causa medo
e assustado o cidadão se rende.
O cidadão
não tem o que fazer,
vaga não há.
Não tem o que dizer,
fala não há.
O cidadão já não consegue crer.
A fé, cansada, é uma expressão do medo.
O cidadão olha pra TV
e vê os filhos vendo picolé imaginário,
uma vida imaginária,
um mundo que pra ele não existe.
O cidadão sonha,
espera que um outro sol se ponha.
O cidadão apanha da vida e vota.
Sempre contra. Contra o quê ?
Ele só sabe que não saberá.
O cidadão
vê os fogos,
vê a emoção, a explosão.
E no dia seguinte
não há gás, alimento,
não há vaga.
não há ilusão.
Páginas 61 e 62
O CORPO
Há no chão
um transeunte
sem coração.
A vida tardia
cansou
neste dia vulgar.
A multidão espia
cautelosa o corpo estatelado
sem cautela alguma.
Curiosidade mal resolvida:
O que faz mover
ou cancelar a vida?
Há no asfalto marginal
o que sobrou do Registro Geral
que consultado
não tem crédito.
Há um desempregado em desespero a menos
nos índices que sobem mais.
Seria um pai? Um traficante?
Beato, talvez?
Havia no caminho um corpo.
Um corpo havia no caminho.
E não era uma pedra,
um poema.
O corpo era de fato.
Página 63
O CRACK
A rua está fria
e não há poesia
no ar que envolve
o mascarar destes sorrisos.
A esperança
a ser pavimentada,
em abandono
clama
pela Providência.
Há que se ter prudência
na abordagem do olhar.
Há um crime no clima
que envolve este clamar.
Alguém pode sacar
a arma da palavra
e a depressão do coletivo
pode abalar a bolsa
dos nossos valores.
A rua está fria
e o sonho,
mal agasalhado,
é só mais um pedinte
desabrigado de ilusão,
que pulsa por acinte
flagelado no coração.
Página 64
O EIXO
Inadministrável ser de vocação facínora,
de falácias travestidas de irracionalidades filosofais
e práticas pelo próximo em causa própria
revestidas de oratórias sacerdotais.
Reverenciamos o princípio e não questionamos os fins.
E sem finalidades perdemos nossos princípios
tornando-nos igualmente ruins.
E discursamos uma sociedade fraternal
paridos todos do mesmo mal.
Somos iguais só no que tememos a sós
e libertadores porque somos todos prisioneiros de nós.
Queremos revolucionar
a depressão latifundiária de nossa emoção,
mas somos vítimas de nosso individualismo tribal,
coletivo apenas na solidão.
Somos contra a miséria do coração,
mas nosso sim equivocado
é eternamente soberano
ao mais abençoado não.
Temos uma pressa coletiva
e saímos atropelando
grandiosos eternos ideais
com ideias efemeramente pessoais.
E como dividir a propriedade que não temos?
Como difundir o que nem ao certo sabemos se queremos?
Como semear amor se cultivamos o ódio?
Verdade se mentimos? Felicidade se não sorrimos?
Igualdade se não repartimos? Fé se fingimos?
Coragem se fugimos? Esperança se iludimos?
Irrealizável sonho travestido de falácias
e irracionalidades temperamentais!!!
Como corrigir com outro erro?
Como libertar com mais prisão?
Como revolucionar, se não mudamos o eixo,
se quer, da nossa ambição?
Páginas 65 e 66
O GERADOR DAS AGONIAS
A revoar na vaga imensidão dos dias,
afã sonhar que em cada um, em si, oscila,
entre o sentir, vil gerador das agonias,
e a razão, que a vida vai e não vacila.
E a se entregar, qual embriagador de sonhos,
e pensador, ruminador da própria meta,
pois pensar dor, é em si, gerar sonhos medonhos,
vai recriando outro mal, outro poeta.
Então a se valer desta cruel espada,
o sonhador, a revoar, vaga os dias
trilhando sempre a imensidão da mesma estrada.
E reinventando dores em novas poesias,
que no sentir, faz da razão palavra armada,
apunhala o gerador das agonias.
Página 67
OLHOS TORPES
Metáforas que refletem
nas vidraças das faces
fáceis sonhos falsos
que viram suplícios,
intransponíveis precipícios
nos edifícios das ambições dos homens.
As ruas velozes
refletem
o desespero da existência
estática.
A insistência humana
em comandar os mundos
é uma arma que dói
uniformizada nos segundos
entre os transeuntes das metrópoles
como fardas que enclausuram sonhos
no quartel dos olhos torpes.
Metáforas velozes
que incandescem os precipícios
da existência.
Insistente dor intransponível
neste falso sonho em farda
inviolável.
Torpe olhar enclausurado
de ambições que não refletem
a felicidade questionável.
Página 68
O SARCÓFAGO
As minhas musas
mumificaram-se
na estante empoeirada
dos meus versos.
O tempo determinou
os seus sarcófagos.
Minha neurótica rotina
já não contamina
minha inspiração
com versos brandos.
O meu poema
é de contorcer o coração
que se petrificou.
Não há lirismo
quando a vida
é uma sobrevivência.
Não há poesia
nos sarcófagos
e as múmias
não inspiram
o poeta ainda vivo.
Página 69
O SERPEAR
Fingidor me entrego neste riso
e afago a dor,
que disfarçada,
se transforma em guizo.
Enveneno-me de mim
e prendo o coração
que contamina
a serpear a ilusão
que não tem fim
no verso que ilumina.
Serpenteio-me na noite,
felino saltimbanco,
a se fingir de eterno
entre as insônias
que se curvam no cansaço
de um versos branco.
E fingidor me entrego neste guizo
e afago a dor,
que camuflada
se transforma em riso.
Página 70
O SILÊNCIO DA PALAVRA
Você que viu brotar o dia
e que não fez chover no sertão,
que não matou a fome do irmão desesperado,
que não amenizou dos olhos a solidão.
Você que furtou tantas lágrimas com sua agonia
que o dia a dia mais intensifica:
E agora, como fica?
Você que falou de Deus e do diabo,
que mostrou o rabo pra Jesus,
que disse das igrejas, dos espíritos
e que tentou dizer das flores do mal.
Você que lutou pela eucaristia
e que buscou a liberdade total
sem saber o que isso significa:
E agora, como fica?
Você que fez rima sem nexo,
que brincou com o sexo da amada,
que achou na estrada todos os caminhos
e que ensinou aos cegos
como a visão tanto o fato afã complica:
E agora, como fica?
Você que esteve na guerra em busca da paz,
que plantou um verso no jardim
esperando que ele se tornasse uma flor ruim.
Você que roubou a cor do arco-íris
para encher de harmonia a palavra marmita:
E agora, como fica?
Você que não se irrita em vão,
que agita sua bandeira apenas
quando a multidão insiste em se deixar possuir.
Você que não conhece a covardia
e que faz alegorias com pedaços de esgoto
e que sai às ruas vomitando iras como aborto
num quadro de histerias
emolduradas no silêncio do que já é morto
e que em meio a velhas utopias
grita:
E agora, poesia, como fica?
Páginas 71 e 72
OS PEDAÇOS DA CRUZ
E as pessoas
procuravam o poeta
porque estavam infelizes.
Deliciavam-se em seus versos
que escondiam suas crises
e nos seus poemas,
pra felicidade,
viam diretrizes.
As pessoas
precisavam de harmonia,
pediam um poema de luz,
mas o poeta
se crucificava na poesia
como se os seus versos
fossem os pedaços
de uma velha cruz.
Página 73
O TEATRO
Condicionados às representações
nos ofuscamos sob os refletores
das leis que executamos
esculpidos em desilusões e letargias.
Os atos se atropelam nas atitudes.
Roteiro de hipocrisias
e sonhos rudes que alucinam.
Peça sem fim.
Monólogo de dor ruim.
Tragédia sem som
em desesperança rítmica
sem tom.
E qual ópera de sertão
morremos na cena
da caatinga da exclusão.
Teatral demência de submissão,
conjuntural interpretação,
onde a plateia, em decomposição,
aplaude por alienação.
Condicionados à ambição
compramos o palco do dia,
latifundiários de um tempo de aflição
e deplorável agonia.
Página 74
O TEMPLO
Preso, abro minha janela
e alguns fiéis plantam
um templo na praça
que não é de ninguém.
Detentores de uma fé
que não possuo,
sobem com a torre
que sobe
e eu que estava sobre
fico sob seus olhares
que me denunciam
e sinto-me infiel.
Olho para o templo
que me obriga a contemplar
o intento dos homens
que emolduram sua torre
de babel.
Olho para o céu
e me pergunto:
O que fazer
além de versos
que libertem o meu templo
numa torre de estrofes
num pedaço de papel?
Página 75
OUTRO LUGAR
Agora o canto é nosso.
Londres não é mais necessário.
Nem Carandiru, Brás ou Moscou.
O show ainda pode começar hoje.
O agora é quase nada e os objetos
tornam-se os objetivos dos homens.
Hemorragias e orgasmos se misturam
entre lágrimas, que paralíticas,
morrem na face sem o líquido da vida.
Vivemos o mesmo passado
do qual nos escondemos,
o mesmo pecado que cometemos ontem
e a mesma emoção metafísica
que não entendemos nunca.
Nunca sobra o tempo de estarmos livres.
Agora o canto é nosso
e não sabemos ainda
se a felicidade existe.
Não sabemos muita coisa mais
do que conseguimos tocar,
do que vemos, do que dói.
Página 76
OVELHAS NOCIVAS
Somos dom inocente
matando a criança
que acata a loucura
por dentro da gente.
Vestimos a face
com frágil coragem
pro medo dos dias
que atrela a ilusão.
Não vemos
que ao termos a vida
buscamos a morte
que é a contrapartida
pra vida mais forte
que é o fim da razão.
E ovelhas nocivas
pastamos a vida
revertendo na morte
o tempo que é ida
pra volta que é nunca
em nossa canção.
Página 77
PALAVRA
Pela palavra amarga feito fel
enfeito a frase feia.
Minha palavra é teia
e embaraça o meu destino.
Se constrói um canto
desintegra um hino
e abomina o pranto
do irmão cativo.
Bela palavra meio ao verso ativo:
Se destina à rima
e sentencia a sina
pela mão que assina o sentimento.
Minha palavra boba
num rebento, tola,
se revolta e faz o vento
revirar as grades pra se libertar.
Palavra de pedir, palavra de lutar.
Se ora feito larva
é por não ter tempo
de saber chorar.
Fraca palavra porca
como o povo que encaminha
a dor que lavra em ladainha
feito larva em oração.
Palavra brava,
pela pátria morta,
que não rasga a porta
e só rumina a vida em procissão.
Páginas 78 e 79
PALCO SECO
Quando os dias ficam ruins
e as horas em nós doem
como cicatrizes,
quando as vozes se avolumam
e as palavras atropelam
os sentidos dos sonhos,
quando a esperança cicatriza-se
na indefinição dos discursos
e os homens contra os homens
se deformam em ursos,
quando o sonhar é um pedra
que a sangrar pulsa de ira
e em piada a utopia é transformada,
que de tanta ira,
no sonhar não há mais nada,
quando as faces vagam
e as vozes em volúpias vazam
o que o olhar sem dizer nada
clame
de liberdade
onde a verdade não é mais
do que esta dor infame…
reacendemos nossas cicatrizes
representando mais um sonho
neste palco seco
e sorrimos para a plateia
iludida por qualquer demência
anunciando um novo ato
intitulado
“O provisório desta resistência”.
Páginas 80 e 81
PAVILHÕES
Imigrantes da loucura
em escola de tortura
decretam o momento
ruim.
Pavilhões da morte
que parecem não ter
fim.
E a história sobressalta-se
com rebeliões infanto-juvenis,
tiros disparados por guris
a desvendarem o excesso
da dominação das massas.
Carcaças de crianças
que se degolam
deturpadas de direitos.
E os dominadores espreitam
em pânico
os parques infantis deteriorados,
os pavilhões incendiados,
os meninos revoltados da imigrantes,
imigrantes da loucura
desta escravidão velada.
Os meninos da morte
desvendam quem os vende
na falência do país
que é um pavilhão imperial.
E vejo,
a mastigar minha saliva de culpas,
os sonhos na calçada
dos meus medos.
Mas é só uma metáfora incômoda
neste incômodo cômodo
da história cômica.
Páginas 82 e 83
PÊNDULO
Na depressão clínica
do amanhecer,
raios de esperança
debatem-se
na densa escuridão
do olhar.
Tenso sonho a agredir a emoção.
E a vasculhar o vazio
falseia o coração
que a bater também
debate-se.
Debatemos os temas de dor,
debatemos a razão
e em patético estado de alucinação
propomo-nos o silêncio
que nos torna estáticos
nesse móvel pesadelo.
E o pêndulo das horas
a soar as badaladas
desta estranha insensatez
que não comove mais.
Clínica ilusão
de que podemos resistir
à exclusão dos nossos sonhos.
Clínico olhar
que a mover-se morre
no que vê de desespero
nos que passam qual pedintes
de emoção,
exilados de si em solidão
e excluídos da ideologia
que não passa mais
de neurótica alucinação.
Páginas 84 e 85
PÉTALAS DAS HORAS
Tanto o tempo, todo o tempo,
temperamental testando o nosso intento
para tornar do agora
o eterno enrustir das horas
no enredo deste nosso inferno.
Tempo glorioso de harmonia
onde a melodia vaza no escorrer do dia
como o que se arrasta em lama de agonia
pra fingir que é exato o que não vemos
no inexato deste vasto que tememos
em desarmoniosa letargia.
Mas enrustir-se-ia a inexatidão do dia
nesta exata lentidão veloz
de verso em prosa atroz
que não será poesia?
Mente, melodicamente, a mente
em sorrateira inspiração
silenciosa.
Ah! Verso a torturar-nos
ciberneticamente em prosa,
tão imenso e metafísico
que não chegará a rosa.
Página 86
PRANTO FINAL
Alguns pássaros sobrevoam homens
em meio aos edifícios que choram.
Automóveis olham-se enfurecidos
com o tempo que os atropela.
O céu de agora
não é diferente do que via Aristóteles
ou as órfãs criaturas
destruídas nas câmaras da segunda guerra.
Há desemprego e um desespero
a sobrevoar os corações
que não esperam mais
que mais um pôr-do-sol.
E os pássaros sobrevivem
sobre as desesperanças dos homens
que aguardam pelo fim dos tempos,
com data marcada
para o melódico pranto final.
O céu de hoje
sobrevoa os desempregados
como ave de rapina enfurecida.
Alguns pássaros desesperam-se
com o que já via Chaplin
nestes tempos de modernidade
e globalização apocalíptica.
Página 87
PREMATURO
É manhã e o amanhã dói prematuro
no pôr-do-sol letárgico
desta globalização de sentimentos
que morrem em blocos.
É manhã e o amanhã dos jornais
nasce premeditando
um futuro repetido
de histerias e de dor.
E o amanhã, na manhã de hoje,
inexiste.
Inexistem os sonhos
publicados no dia anterior.
O dia dói triturado
por máquinas obsoletas
que emperram as engrenagens
direcionadas por teclas que viciam.
Sentimentos lacrimejam
na internet.
Momentos desnecessários
a nos consumirem,
consumidores absolutos
desta transitividade de valores,
que nos elimina sem destaque,
sem réplica ou absolvição.
E debatemos em nós
uma tentativa qualquer
que ainda lembra um instinto de vida,
instinto eterno de felicidade,
mas, para quem sabe, amanhã.
Mas hoje, enter!
Mouse a mover as sensações.
Mercado comum de tédios e chacinas.
Coletivas histerias
espelhadas na dor scaneada
nas páginas do dia seguinte.
Páginas 88 e 89
PRISIONEIROS DAS ABSTRAÇÕES DO ESTAR
Frases entrecortadas
sacodem a ilusão
nos sótãos da esperança
em meio aos esconderijos
do que somos
a cada amanhecer.
A mulher sacode na varanda
a vida que não passa
enquanto que passeio
os olhos pela praça
a revirar velha moldura
que apesar da pose,
não tem graça.
Vida feita de móveis sentimentos
que não modelam a existência.
Sentidos tolos atordoados
entre metafísicos tormentos
que incomodam o momento
no qual tudo está perfeito.
E reinventamos nossas verdades
em meio às mediocridades
que congestionamos
universalmente em nós.
Mas revivemos.
Pulsamos o sonho que repulsa.
Sorrimos instintivamente
entre os instantes.
O relógio para.
E em nós,
a engrenagem fria
no pulsar ainda se move.
Páginas 90 e 91
PÚBLICO
Semeiam minha emoção
no chão das desesperanças
das crianças deformadas
deste instante neoliberal.
Minha canção é um olhar indignado
sobre os índices de mortalidade.
Meu coração, um poeta disfarçado
sob as mímicas de cruel fatalidade.
Algo mais do que preciso,
mais do que pressinto,
preciso semear na multidão
que dorme o seu sonhar
de umbral.
Os ombros não suportam o mundo,
os olhares não se suportam
na velocidade dos faróis
que tentam controlar os corações
que alucinadamente não se espiam.
E espio letárgico por dentro de mim
pra ver se vejo o semelhante,
espio versos de Neruda,
espio Drummond, mas só me encontro
na Metamorfose pendurada em minha estante.
E Kafkaniano vou parodiando nos discursos,
semeando os impulsos das hipocrisias
que não cabem nas poesias dos poetas disfarçados.
E os pedaços dos pecados,
quando semeados,
denunciam o ateu indignado
detido em cada coração,
que denunciado,
até mesmo vira, disfarçadamente,
um pouco mais cristão.
Páginas 92 e 93
SENTINELA
Prisioneiro do tempo
a retalhar com silêncio
a vocação da fala.
Prisioneiro da estrada dos dias,
das agonias
das abstrações do estar.
Detento da sala,
que em vídeo-tape
a boca cala.
Prisioneiro do tempo
a represar a ilusão.
Um sentinela
em continência de submissão.
Página 94
SERENA AUSÊNCIA
Negra e sugestiva,
de estrelas revestida,
sutilmente passageira,
enobrece a noite
os sonhos dos homens.
Amena escuridão
que irradia
a presença de Deus,
a permanência da esperança
e o reabastecer da paz
nos pecadores que dormem.
Serena ausência de luz,
dormência do que é veloz,
acalanto do que é atroz.
Negra a clarear
os pensamentos
atormentados pelo dia.
Revestida por Deus,
sugestiva
a irradiar a presença da vida,
entre insônias,
a noite acalanta
a escuridão dos homens
que adormecem
dos seu pesadelos
invisíveis à luminosidade
do amanhecer.
Página 95
SÍNDROME DO PÂNICO
Alternativas de escape
aceleram minha pulsação
de medo.
Mecanismos de uma fuga vã.
Vasto dia em plena escuridão
a decompor minha emoção.
E um delírio brota.
Na agonia destas alucinações
bailam as síndromes,
germina o pânico de razão incerta.
A olhar a rua
vejo olhares
que não me consolam.
Um solo de instrumento místico
pode assustar-me e eu sorrir
estranhamente como se a mim
não visse no espelho que se transfigura
a me decompor.
Quem não sou
no que me vejo
me conhece.
Desconheço
o que sou
no que me vejo.
E tudo isso me entristece.
Mecanismos de uma fuga coletiva
neste corre-corre de procuras.
Alternativas de escape pro colapso
destas nossas solidões.
Há estranhas flores no jardim.
Há o tempo, farândola que não passa,
enquanto que envelhece a criança em mim
aconchegada pelo medo que devassa
e que não mais tem fim.
Páginas 96 e 97
TRISTE
Na dor de cada um,
intransferível,
a intransponível sensação
de impotência
esculpida de silêncio
numa madrugada triste
de injustificável ausência.
Uma tristeza vaga
oriunda de lugar nenhum.
Inviolável, estática…
de doer a emoção.
Inafiançável desesperança.
Triste como uma criança
abandonada pelo amor
que não possui.
Na dor de cada um,
instransponível desespero,
injustificável ausência.
Um implorar de pedra
esculpido no silêncio
de uma madrugada triste.
Página 98
VÉSPERA DA FLOR
No que sinto,
no que penso,
intenso procurar,
imenso sonho
qual a flor
em véspera de desabrochar.
No que digo,
no que tento,
esperança interminável
de encontrar o que alivie
o latente desta dor.
Hoje, véspera eterna
de um futuro relativo,
um sonho que se recompõe
no denso deste metafísico.
No que vejo
pelas ruas dos meus semelhantes,
eu vasculho nos instantes
o meu porquê
como a flor
que no deserto se pergunta:
De que vale tanta cor
já que ninguém me vê?
Página 99
ZERO HORA
É meio noite
e os beatos disfarçam
seus olhares mímicos
entre o céu e o medo.
Qual o preço das premonições do pânico?
Qual a pena para os divagadores
que propagam síndromes?
É meio noite e quase nada terminou,
salvo o tempo
de cruel barreira
impedidora do sonhar.
…E o medo, meio afoito,
esvai-se dos olhares tão singelos
dos que vivem pela boa fé.
E os profetas do apocalipse,
carpideiros do caos,
beatificadores do tempo
e bestificadores da eternidade
disfarçam seus olhares
na mediocridade séptica
dos que agiotam a desesperança.
E no primeiro minuto da nova hora
um intenso luto
a lamentar a aurora perdida
a cada dia da vida
que deixou de ser vivida
em toda a sua plenitude.
Mas as crianças cantam o milênio novo,
os cães vigiam os quintais,
os sonhos espiam por um vão do coração
e alguns velhos acordes, ao vento,
emolduram melodias para o novo tempo
ao som de riso, pranto, realidade
gerando a infinita inspiração
parida pela criação que é a eternidade.
Páginas 100 e 101
“Eu, que nada mais amo
Do que a insatisfação com o que se pode mudar
Nada mais detesto
Do que a insatisfação com o que não se pode mudar.”
Bertolt Brecht