
“Os dias se entrelaçam
para que o tecido do tempo
retempere nossas almas.”
DA PEDRA À PLUMA E O INESCAPÁVEL DESTINO DA POESIA
Por Reinaldo Melo
Em seu primeiro livro, Notas das Horas, Paulo Franco explorou a palavra pedra como metáfora de um alicerce da abstração em que o concreto dos dias está assentado. “O Trem Comum”, “Instantes de Pedra” e “Túmulos de Paz” são poemas da obra de 1995 que traduzem a relação do eu com o cotidiano, pautada entre o mundo material e o almejar uma transcendência inalcançável, o ser que “empilha a pedra/ [e] desintegra a vida”.
Passados vinte e dois anos, em A Rua Dos Dias o poeta volta à carga mais uma vez utilizando a antiga metáfora. Mas ao invés de assentá-la, joga-a para o alto, com o claro intuito de revisitar sua poética. E engana-se quem classificar tal movimento como subterfúgio de uma poesia em crise. O que se vê é a justaposição da imagem pedra a outras contrárias, e o resultado é uma obra, que mais uma vez, revela uma lírica comprometida consigo mesma sem se utilizar dos escapismos tão comuns. É uma poesia que, ao ser metalinguagem de si mesma, consegue transpor a pedra na qual se assentou.
“O Tecido” é um claro exemplo de uma poética que não naufraga em si, pois se constitui como arte que de si quer escapar, ao afirmar que metáforas como pedra “são exemplos típicos/ desta maquiagem que o poeta/ ensandecido proclama para cutucar/ o nosso olhar…” Porém, a pedra que ensandece é a mesma pedra com o qual “tecem-se os sonhos”.
“O Tempo e A Pedra” é o poema chave para se entender a trajetória da lírica de Paulo Franco. Vemos que o peso desta sina é transformado em material do próprio fazer poético. A pedra “é bem maior que o poeta”, mas
é dela que se fazem as ondas, os sonhos, as dores, a eternidade e o canto que povoa esta poesia. É este o processo que a palavra executa: transformar o peso das coisas em leveza do olhar, mesmo povoado por “mar e icebergs”.
E é o memorialismo intimista que evoca a metamorfose da pedra à pluma, do menino ao homem que o investiga, da inconformidade com o presente ao saudosismo de uma infância assinalada como utopia perdida.
Em “As Cigarras e Os Girassóis”, o canto das cigarras é uma lembrança análoga ao canto dos entes queridos perdidos, das canções de ninar acalentadoras. Aqui o poeta demonstra o domínio da construção das metáforas que traduzem o peso de sua condição: “alma de vidro” “alma sólida” e “pitorescas alegorias” são justapostas às imagens da infância, que funcionam como ópio de um ser que, desperto no labirinto da vida adulta, se remete à leveza das “paredes de fumaça”, da “taipa da alma”, dos “campos de girassóis”. Enquanto que a vida o petrifica, pois “e meio menino, fui virando outra coisa”, a poesia faz o movimento contrário: se transforma num pathos alegórico capaz de o remeter à utopia sinestésica “meio a sons, cheiros e tons/ de uma intensa e infinita saudade”.
“O Tear” segue o mesmo fundamento na construção de imagens nostálgicas que se contrapõem ao fato de “que o futuro é sempre o porvir/ já que o presente o tece lentamente”. Com isso, quer o poeta a defender que o passado é o único elemento lúdico capaz de suavizar “o olhar, timidez de um mundo estranho”?
Não! Paulo Franco se destaca na poesia brasileira justamente por não delegar a si a tarefa de um escapismo romântico ou de pirotecnias formais. Sua abordagem é material e metafísica: sabe que o tecido da vida é o presente, “o instante é único o tempo inteiro,/ universal e inevitável”, entretanto pontua que nele é que se bordam as reminiscências sobre a construção do ser simultaneamente com o que “modelam a espera pelos amanhãs/ que outros hojes virarão”.
A preocupação com o dia seguinte coaduna com a obsessão pelo dia seguinte. “A Página”, “Flor Fora de Hora”, “O Arquipélago do Tempo”, entre outros, configuram-se dentro da obra como formas diferenciadas sobre o mesmo tema: o tempo presente caótico faz a poesia urgir naquilo que é a sua tarefa: ser retrato do que o humano foi e é, em sincronia com o que este poderá vir a ser. E eis onde mora a genialidade de todo poeta que leva sua arte a sério: a exploração de seu interior para que a poesia seja a antena a captar os anseios universais da raça humana.
Temas como Amor, Política, Família e Cotidiano também se fazem presentes, mas são pontuais na construção que A Rua Dos Dias faz da relação do indivíduo com o tempo que lhe foi dado para apreender e vivenciar estes elementos, na complexidade e singeleza com que tecem o efêmero absoluto, tópico central desta poesia.
Esta é uma obra riquíssima. Uma perfeita tradução do peso e da leveza da vida e do inescapável destino de uma poesia que faz da pedra de nossos dias “uma linguagem que acalme o coração”.
Reinaldo Melo é Mestre em Teoria da Literatura
e Crítica Literária pela PUC-SP
Páginas 9, 10, 11 e 12
AS CIGARRAS E OS GIRASSÓIS
O canto das cigarras da minha infância
alimenta a minha alma de vidro
que foi se partindo a cada partida
nas estações deste viver de inconstâncias.
E a mesma alma sólida e simbólica
se alimenta ainda hoje
do lúdico e do contraditório
de cada lembrança que se eterniza.
A emoção que arrasto concretiza
as minhas vidas todas em uma
e trama realidades subjetivas
enquanto poetiza
a dor do amor um pouco a cada dia
na vastidão da poesia deste labirinto,
qual o opiário de mim na correnteza do que pressinto.
Eu seria outro se as saudades fossem outras,
ou, talvez, se as lembranças não existissem,
sobretudo aquelas que demarcam as covardias
que determinaram o meu lugar comum
de renúncias e arrependimentos.
As imagens que vejo sobre o que vivi,
hoje, são pitorescas alegorias
sobre o que não fui ou vi.
A casa simples com paredes de fumaça
era um santuário de premissas
por entre as madrugadas de insônia
que a infância fingia não perceber.
Sobre o fogão a lenha
o porco de estimação a se defumar
para manter a vida que nos determinava
à razão dos fatos, sem poesia ou contradições.
Na taipa da alma, um menino se escondia
alimentado pela luz de cada dia
que alicerçava a poesia
meio a prantos e encantos
que ninguém nunca percebeu.
Arteiras, as palavras já brincavam
de antíteses e ironias
que ainda não tinham nome,
mas que vagavam por entre o bem e o mal
e ardiam na alma em combinações vocabulares
que jamais fizeram sentido literal
pois as metáforas ainda iriam acordar.
Algumas figuras pobres
foram determinando
o passageiro dos dias ricos
que não voltaram mais.
A mãe, o cão,
as fogueiras que o pai fazia no quintal,
as estórias de assombração,
os medos pequenos,
os medos grandes
que me ninam ainda agora.
E meio menino, fui virando outra coisa,
pois que tudo o que havia já não há,
embora muitas emoções continuem estranhas,
indóceis, indomáveis e à mercê
do figurativo que a alma impõe.
Agora o tempo é outro,
sou outro a cada lembrança,
a cada presente que se desfaz
para virar as lembranças dos outros.
Apenas o canto das cigarras,
em mim, permanece o mesmo
e o tempo fez surgir
alguns campos de girassóis.
Manhãs antigas a cada novo sol
demarcam inéditas esperanças
de uma vida a cada instante,
uma vida no meio de uma multiplicidade de vidas
sob os mesmo medos intermináveis,
inconstantes e doces
de que um dia tudo isso acabe
embora no quintal de nossas imagens
algum ente querido que partiu ainda cante docemente
os versos de antigas cantigas de ninar
que acalantam a criança em nós para sempre
meio a sons, cheiros e tons
de uma intensa e infinita saudade.
Páginas 13, 14, 15 e 16
BOCA DA NOITE
A noite ainda não veio.
Então caminho o final do dia
a observar os pássaros
que se escondem
da escuridão anunciada
pelos ruídos nos restos de luz
que vão adormecendo
nos cheiros da boca da noite
para o ninar dos raios
que orquestrarão o prenúncio
de um novo pôr do sol.
Página 17
CARNAVAL
Tenho uma alma com plumas e medos.
Os paetês estão coloridos
no coração que pulsa sem cor
a mescla de iras e sonhos escondidos
no olhar que a todos enfrenta
cabisbaixo.
Palhaços, laços, estilhaços de esperanças
como arlequins e pierrôs de pedra
entre serpentes e serpentinas
que rompem os silêncios
das minhas madrugadas frias, cansadas
de insônias repletas de buscas que não cessam
em nome da procura implacável sobre o indizível
que não gera sono, mas embala o tempo
na grande avenida dos sonhos.
Os meus invisíveis
alimentam o meu dia de rua,
de aços que se movem, de lua,
movediços sentimentos que deletam o presente,
o passado ausente,
o futuro inexistente de alegorias imaginadas
que são sempre ícones improváveis
deste tempo que se contradiz
repleto de desesperanças e desilusões
que enfeitam arrependimentos
sobre o que nunca fiz.
Plumas e paetês desfazem o poeta
para que a poesia reexista
aonde nem existe fantasia.
Há pierrôs esparramados
nos meus versos
que são alas do que sinto
ao inverso do enredo
a ser representado
num desfile de adeus à carne.
Há colombinas,
mestres-salas
que portam bandeiras
meio a arlequins embriagados
e alguns garis com fantasias de felicidade
que demonstram euforia
enquanto gritam “carne vale!”.
Nem é quarta-feira
e as cinzas do que fui me fantasiando
esparramam-se pelas avenidas
onde não há mais ninguém
além dos heterônimos que se cruzam
invisíveis ao meu mais profundo eu.
Mas é carnaval no meu poema
de enredo impreciso.
Cada verso serpenteia um guizo
e a vastidão do que pressinto
nunca cabe na primeira estrofe
e clama quando alguém o declama
por um poema longo
de “eu lírico” que esconde que ama
onde a escuridão em versos brancos
fantasia-se de luz
para que o dia atrás das noites
traga a poesia em vasta claridade
para o carnaval que é a vida
que caminha ritmada para onde?
Para o fim ou para a eternidade?
Páginas 18, 19 e 20
CASAMATA
Em meu coração de guerrilheiro sem armas,
inativos,
alguns sentimentos se escondem do medo
dos bombardeios que o querer determina.
Minado por dentro,
pulsa passivamente
como o que vai explodir
indiferente aos motivos
de suas próprias guerrilhas.
Meu coração
tem caminhos estranhos, estreitos
que não levam a paixões extintas
e nem desfazem os medos
que o mantêm esconderijo de si.
Casamata ativa a esconder-se
das artilharias de lembranças
que viram saudades no presente
de uma guerra por sonhos
que nunca deixaram de existir.
Em meu coração,
prisioneiro de intrigantes buscas,
o meu olhar soluça no horizonte
fingindo-se de liberdade,
quando na realidade
só o meu coração sabe
que ele é prisioneiro de si.
Páginas 21 e 22
CATACRESE
Havia uma palavra em silêncio
caída ao lado do pé do fogão,
outra perto da perna da mesa
e mais uma recostada no braço do sofá vazio.
Enquanto isso,
o olhar distante a olhar
a asa da xícara estática,
a cabeça do alho
triturando-se com os próprios dentes
diante do bico do bule
a aguardar o cheiro do café
guardado na lembrança
de alguém que não existe mais…
Ah! A saudade é como um sentimento
que de tão intenso
parece que ainda não tem nem nome.
Página 23
CONTRAVENÇÕES DA ALMA
Quando imaginei um amanhecer diferente
a minha alma ainda era tenra,
os meus sonhos eram pequenos
e a felicidade se agigantava
com qualquer brincadeira de roda,
porque a vida ainda era
a resplandecência de um imaginário
que incandescia o olhar
inebriado de horizonte pleno.
Quando imaginei um outro tipo de mundo,
as utopias eram iguarias em minha alma,
as palavras socializavam os sonhos
e traziam a grata sensação
das esperanças incansáveis
daqueles que, em paz, arrebentam barreiras,
derrubam tiranias
e reconstroem gritos de liberdades
sobre destroços de muros e de silêncios.
Quando te ofereci paixões,
o meu amor não existia ainda
e o coração, repleto de bandeiras,
tremulava em imaginários mastros
que só sustentavam tênues ilusões
de que as coisas, um dia,
seriam diferentes.
Sem cercas, propriedades ou contravenções.
Páginas 24 e 25
CULPAS
Das vontades do corpo
aos pecados da alma,
as incógnitas dos sonhos
estampadas nos fatos.
Na ausência das esperanças
o olhar o sol sem ver o dia,
indiferente a quase tudo
em um vago necessário e inoportuno.
No calendário,
um não valer a pena estagnado pelo hoje
ridiculariza o amanhã
como se não tivesse existido o ontem.
Parasitário
nego o diagnóstico das emoções
que determinam a ausência dos desejos
indesejáveis a cada afago não realizado.
A esperança cambaleia no remorso
de cada sensação que não vingou
e vitimado pelas culpas da desilusão
nega o coração a absolvição dos sonhos
contaminado pelo fogo que é a paixão,
este ilusório vocábulo que nos causa dor
porque confunde a frivolidade do momento
com a eternidade do mais nobre sentimento
só contida na palavra amor.
Páginas 26 e 27
DO SILÊNCIO AO GRITO
Iludidos, os sonhos dos velhos adormecem
enquanto que a juventude
sacode mastros ancestrais que não envelhecem
na ilusão de que inexistam bandeiras banais
que avolumem os canibalismos involuntários
dos nossos fisiologismos brutais.
Gritos rompem silêncios
e insistem que a liberdade existirá,
que a igualdade virá,
que as fronteiras desaparecerão,
e que desarmadas as multidões,
os grilhões exterminar-se-ão.
Lá fora, a rua não suporta mais
alguma coisa que não se vê,
que não se crê,
mas que não se pode mais conter.
Abstratos, os olhares revelam
a magnitude de um tipo estranho de desesperança
que um dia se cansa
e de maneira afoita se lança
fisicamente às grades
que protegem um poder
que não se sabe aonde está,
ou o que seja, ou quem.
Então vasculham a rua inteira,
a pátria inteira, o mundo,
o universo de cada pedaço de um sistema
que imagina sempre novas fórmulas
para nos condenar e nos conter.
E do silêncio ao grito,
do papel ao face, ao infinito
os ideais que se confundem nas faces
e se alastram daninhos
qual fagulhas de uma luz
que nasce em nós
pra desatar a escuridão
dos nossos descaminhos.
Páginas 28 e 29
FLOR FORA DE HORA
Queremos o dia seguinte
porque nele moram as hipóteses,
as coisas, as paixões e as incertezas.
O livre arbítrio títere do hoje
implora pela liberdade do amanhã,
que guarda os conflitos nos sonhos,
enquanto regamos um novo jardim
que não aflora a flor fora de hora.
Queremos o instante seguinte
porque dentro de nós
presságios nos avisam
que somos infinita transcendência.
A sentença do instante instável, lá fora,
é espera e eternidade,
miragem provável
de felicidade inimaginável
já que o hoje pouco existe
e o futuro é um tempo sem fim.
Página 30
FOLHAS SECAS
Enquanto olho a rua,
na vidraça, a minha face
é só reflexo do coração
que não se enxerga nu.
Na alma, meio a vadias sensações,
vasculho em cada transeunte
o que nem mesmo sei de mim
por entre públicas ilusões, que à deriva,
enrustem fatos que não podem ser sonhados.
Os cães, as folhas secas,
os cios nas calçadas,
as pressas que disfarçam medos
entre andarilhos e fadas.
Faces que se trombam enquanto se procuram,
mas ninguém me vê no que me assisto
nestas representações nas ruas que me arrastam
para o meu destino, único, solitário e intransferível.
A vidraça fumê me esconde do mundo
refletindo a minha alma que se expande pelos olhos
que sem brilho só ofuscam
o que busca o incansável coração em lida
pois que não se enxerga a se debater
para pulsar outra emoção que justifique a vida.
E enquanto isso, espio a rua
procurando a minha face nua
que o tempo escondeu
para que o espelho me apresente
a cada instante
um personagem diferente
que nunca sou eu.
Páginas 31 e 32
GEOGRAFIA DA ALMA
No meu amor mora a paz,
moram os sonhos dos mártires
que em vida a cada instante
abalaram tiranias
vislumbrando no horizonte insolúveis utopias
para que a liberdade inconstante
se tornasse a amante do raiar de novos dias.
No meu amor há flores de indistintas cores,
o meu amor é um jardim sereno
de infinitos amores.
Um canto impera luzidio
no meu amor, ameno,
pois não é feito de espera
e se refaz, ainda que arredio,
a cada instante pleno.
No meu amor há um mar de amar
banhando os continentes do coração
para tornar da geografia da alma
um hemisfério de luz e ilusão.
O meu amor, reluzente,
é o sol da terra, é o sal dos corpos
no suor de cada relação ardente.
O meu amor é rarefeito e veemente
porque é feito de paixões.
Ele é silêncio, é o ato, é o momento,
interlúdio das canções,
ele é a eternidade,
pois ainda que vire saudade,
alimenta a razão do batimento
de infinitos corações.
Páginas 33 e 34
LINGUAGENS
Na noite há medo e solidão.
Incertos, tememos a linguagem do tempo
quase sempre à toa.
Fluídicos sentimentos,
lembranças , passado intemporal
que como ave voa.
Ilusórios, lembramos das mães,
das brincadeiras, das indiferenças,
das incógnitas que é ser
um bicho que mata e ama,
acaricia e abate,
apaixona-se e estranhamente esquece.
Aloco-me em meio aos semelhantes
e procuro me amansar por dentro pra não ser hostil.
Sinto-me vento porque poetizo o intento do ser
que nunca sabe além do que pressente ou vê ou viu.
E me revisito criança nas estações atrás das rugas,
inocente embrião de múltiplos pequenos pecados
que condenam a liberdade por aquilo que se crê.
Indiferente a isso ou àquilo,
como a flor que nasce indiferente ao jardim,
aguento as coisas como elas são.
Redesenho outras linguagens
e reviro a poesia inata em mim.
Tolero os seres como são,
tolero-me, às vezes,
toleram-me,
às vezes não.
Não sou e não serei o nada das indiferenças.
Grito o possível dentro do silêncio invisível
de cada instante que a verso teço
para interagir com o desconhecido
que o instinto indica.
Sósia de mim,
me desconheço
com a liberdade plena
de uma próclise indevida
em uma vida onde os semelhantes
não exercem uma língua una
e em decorrência a escuridão se instala.
Há um abismo entre a audição e a fala.
Somos os apóstolos de uma crença inócua em nós
que não desata a fé inabalável
que removeria as montanhas das nossas almas más.
A palavra é infame
e não importa a língua
em que tal grito inflame,
a libido que derrame
a falta de vontade de viver
o que se ame sem convicção
ainda que o nosso tolo coração proclame.
A lua é só um pó na noite
que transcende o entendimento,
é a escuridão de quem não vê
ou não entende o sentimento
que jamais será o verso, a razão,
mas que será eternamente alguma arte
que traduza a poesia pra encontrar
uma linguagem que acalme o coração.
Páginas 35, 36 e 37
MOLDURA
Há uma fresta
que reluz o dia
entre o batente
e a fechadura.
Dentro do quarto
o sentimento imensurável
de uma vida que se perde
e que perdura.
O corpo lento, frágil,
a vida dura.
Encenações dentro de um quadro,
uma moldura.
O coração dormente
embebedado pelos versos
de um poema de loucura.
A olhar a fresta
o outro lado é um vazio intenso
frente a um medo intermitente
que jamais tem cura.
Página 38
NANQUIM
Procuro uma espada
de palavras que me deem respostas,
algo pontiagudo, verso vil,
como antíteses de paixões opostas
em um falso sonho hostil.
Mas em minha emoção
só vem esferas,
feras que não ferem,
ferimentos indizíveis
e me entrego frágil
no olhar que escamoteia
uma aurora azul de anil.
Procuro uma fada
em um alguém qualquer
desritmado nestes tons de cinza
que já fui ao espiar dentro do olhar
o procurar de uma mulher.
Sou meia lua,
sou inteiro espadachim,
sou como espada de palavra quase nua,
mas na pintura eu sou a estrada,
o descaminho,
eu sou uma estrela de nanquim.
Página 39
O ARQUIPÉLAGO DO TEMPO
Algumas saudades embalam
o meu olhar distante
a se perder no infinito incerto
e é só assim que não me sinto só.
O meu coração de plumas,
no concreto dos momentos
despedaça os sonhos absolutos
enquanto que o passado estático
se eterniza em meu olhar carente
que se observa em um espelho
onde não há mais nada.
Imagens de momentos
em lugares com pessoas que partiram
perduram um relativo tempo
em dimensão perpétua
já que o peito não esquece.
E o meu coração,
essa casa vazia com varanda a céu aberto,
esse arquipélago de lembranças
com resquícios de felicidades,
arrasta os requintes de uma eternidade
que ironiza a nossa passagem
por entre os instantes em infiéis imagens
sobre o que hoje não existe mais.
Alguns endereços abandonados
espiam as ruas
e refletem as mesmas saudades
que jamais permitem
um poema sobre solidão
exclusivo
para cada casa velha abandonada
por não ter sobrevivido ninguém.
A colisão entre o silêncio
e os fatos que se foram
biblifica as almas dos incautos.
E por entre os escombros
que avistamos por dentro e fora de nós,
vasos em varandas sem pintura,
castiçais que não aquecem,
pois que a chama não perdura,
um santo pendurado na parede nua,
uma gaiola sem canto,
o desencanto na foto que restou,
pois que as dores, as felicidades,
tudo o que ali havia passou.
Páginas 40, 41 e 42
O BRINCO
Na noite, cato, alheio a tudo, a tua mão
que faz pulsar os meus mistérios,
meus desconhecidos adultérios
a ressuscitarem o que nunca fui.
Sereno mato a minha dor
e estrangulo quem não sou
para saber de mim.
E no outro dia, à luz do sol,
eu passo o sentimento a limpo,
verifico novamente se é um sonho
e acordado brinco
revivendo a tua mão em mim
e o meu amor intensifico
enquanto a minha, num deleite,
afagava o teu brinco.
Era de fato
o nosso ato impuro
no silêncio puro grito.
No meu peito o teu calor
fazendo aquilo que era dor
se transformar em infinito.
Página 43
O FATO E A FICÇÃO
A vida é o fato.
O sentimento, a ficção.
Sinto cactos na alma
sobre os quais arrisco versos
brandos.
Grito de espinhos
qual espadas que acirram silêncios
num deserto de sonhos
com miragens e belos
por uma arte insensata.
Há sede nas flores
que brotam daninhas da inspiração.
Sonâmbulos pesadelos
confundem o real
que paira no imaginário
de uma ficção que se vinga
se fingindo de fato
por de fato ser a ficção.
Invisíveis os sentidos
harmonizam
o insensível deste procurar.
Paixões que deturpam realidades
e realidades que inviabilizam paixões.
O sentimento é de fato.
A vida, uma ficção.
Páginas 44 e 45
O INEFÁVEL DO TEMPO
A vida,
lúdica e contraditória,
faz da poesia
uma oratória ineficaz,
mas necessária.
O instante inelutável
é um poema concreto
à deriva no inefável
do tempo.
O verso inepto capta
a impressão das coisas
que são sempre
imensuráveis.
Ah! Nobre poesia
que nem mesmo
codifica a luz do dia,
mas que a alma intensifica,
já que a vida é passageira,
mas a poesia fica!
Página 46
OÁSIS
Acordei e o meu jardim não tinha cor.
Flores sem tom, à brisa, vistas da janela,
vertiam saudades em pétalas de arrependimentos
sobre o que não foi feito,
não foi dito,
não foi nada.
Na contramão das horas,
o meu olhar, parte do horizonte incerto,
a se perder à captura de algum perfume
para a alma infértil.
Plantei o pé no pó de alguma estrada
sem saída e àlém de mim não fui.
Incertos descaminhos de paixões não ditas
e gritos expandidos por dentro
do vazio intenso de um coração que peca
por querer demais o que não há.
Em meu jardim de aromas vagos
uma ave de rara beleza e sem asas
a olhar, sem horizonte, o azul do céu
enquanto plana no infinito o voo imaginado
como pássaro condenado pelo canto
que o torna réu .
Estranho pressentir a me contaminar
de sonhos possíveis e improváveis!
E sorrateira, a poesia a me espiar por dentro,
instintiva, não vê que à face uma lágrima escorre
entre rugas e tensões.
Morre um pouco mais o meu jardim
a cada olhar que não enxerga o que tenta perceber,
já que o poema me impõe num verso branco
que as flores sempre estiveram lá e ninguém viu,
como um deserto de miragem
com um cacto à margem
de um oásis que nunca existiu.
Página 47 e 48
O QUINTAL
Cerceio incertamente a medida dos meus passos
pra contê-los no quintal dos meus instintos
tresmalhados de emoções.
A razão da rua a escorrer os homens
esconde medos invisíveis
na clausura da dormência das nossas paixões.
O meu quintal, seguro ou não,
os meus passos em perigo prende.
…Cauteloso caminhar
no quadrilátero do meu coração.
Pontiagudos sentimentos sobre o que não sei
neste latifúndio de lembranças
e procuras muitas vezes vãs
no vago do que lembro dos esconderijos
sobre os sonhos que não realizei.
Segue o céu o meu olhar ao léu,
por entre as nuvens
que caminham sempre ao horizonte incerto,
enquanto busca outro olhar
pra liberdade não virar miragem
no infinito de um quintal deserto.
E posseiro do que há dentro dos muros,
para além de mim não vou.
…Face casmurra, sem lirismo
a camuflar-se em desapegos sobre o que não sou.
E não conto ao poema em mim desritmado
que há versos quase alados que viram canção,
assim como me guardo deste mundo cão
não abrindo aos sentimentos
as porteiras que fazem fronteira
com o risco das calçadas
que margeiam as esquinas do meu coração.
Página 49 e 50
O SONHO QUE AINDA RESTA
Tivemos a chance de mudar o mundo
quando ainda tínhamos grandes sonhos
que tornavam as utopias pequenas
e elas ainda eram horizontes possíveis
e as teorias escapavam das páginas
para impulsionar os corações
que tremulavam como bandeiras
de uma igualdade provável.
Tivemos a chance
enquanto acreditávamos
que as fronteiras eram frágeis
e que até mesmo a América Latina
era só um pedaço do mundo
aonde plantaríamos a liberdade
e ela viraria uma ordem para o universo
que partiria da nossa rua
impulsionada pela juventude do brilho do nosso olhar.
Tivemos muitas chances
enquanto avistávamos no horizonte,
a cada amanhecer ou a cada verso,
uma nova possibilidade de infinito
que nos impregnava e às palavras causavam
a leveza do voo que não podíamos conter.
Mas hoje, amor, vamos dormir mais cedo,
o silêncio impera ainda antes do anoitecer
e apesar dos bombardeios
o sono se faz necessário
para que o esquecimento em ânsia vã
revitalize o pouco de sonho que ainda resta
para um provável amanhã.
Páginas 51 e 52
O TEAR
Na lembrança
um campo de girassóis,
um pôr do sol tecido de paz
e o poema de um menino
que não existe mais.
Na correnteza dos dias
o ruir de alguns sonhos
que não teceram realidades,
o fluir de esperanças
que foram despencando
como pétalas que se despedem da flor
enquanto fertilizam o jardim
para que a vida se reedite.
A mãe na janela, à boca da noite,
a entrelaçar olhares no horizonte incerto,
a lamparina a tremular
figuras na parede envelhecida,
a fome de alguma coisa que não se tem
a fazer teias sobre a ilusão.
Lá fora, o som da mata no escuro
insistentemente a lembrar
que o futuro é sempre o porvir
já que o presente o tece lentamente
enquanto que se desfaz.
Ao amanhecer,
o fogão a lenha reaquecido,
o cheiro do café
anunciando a continuidade
do tecer da vida
que tecida
se desmancha em lembranças
sobre ausências irreversíveis.
Páginas 53 e 54
O TECIDO
Não trago promessas vis
para vislumbrar os olhos de ninguém.
O acaso da palavra é o único alimento possível
para os versos que escapam
do que todo poeta finge, mas não tem.
Teço os sonhos
com baobás e pedras e paixões.
Não esperem da poesia alguma verdade
nem tão pouco fortalezas ou revoluções.
O poeta mente inclusive em ilusões
quando vê belezas que nunca se viu
em coisas que são naturalmente feias,
mas que servem ao belo do poema
que também é feio fora do contexto que o pariu.
A poesia se tinge de figuras,
que inteligíveis à emoção profana,
transcendem à capacidade das linguagens
desta espécie tão somente humana.
“Uma pedra no caminho”,
“uma flor que nasce no asfalto”
são exemplos típicos
desta maquiagem que o poeta
ensandecido proclama para cutucar
o nosso olhar de mar e icebergs.
O cenário, quase sempre, é a procura
vasta e profundamente inatingível.
Inteligíveis, pobres corações
derramam em versos
o que a prosa não atinge
e o olhar não conta quando vê.
Bárbaros tecelões de textos
entrecortados por versos banais,
que diversos às prosas coloquiais
vasculham as profundezas que tecem as procuras,
que de nós indesatáveis
se desmancham em laços amenos
que ao poeta enfeitiçam como rituais,
qual paixões ou outros sentimentos
pautados por irracionalidades
passageiras e estranhamente temperamentais.
Páginas 55 e 56
O TEMPO
O hoje é sempre um dia estranho,
um presente desconhecido
e eu não o reconheço passando em mim,
passado em nós
como um labirinto sem fim.
Amanhã, talvez eu o entenda,
mas poderá ser tarde demais.
Já não será o hoje
e implacavelmente não caberá mais decisão.
O tempo não espera nada ou ninguém
e é somente uma lembrança
que nunca mais retorna à praticidade do que é real
em cada presente deste imaginário,
no qual somos apenas coadjuvantes sem roteiro
para as cenas inimagináveis desta peça
que repete sempre o mesmo final.
Caminho pela areia fictícia de grãos desconhecidos
à margem de um oceano de miragem
com águas e ares e aves e cheiros
que jamais estarão nos mesmos lugares
em momentos distintos.
O instante é único o tempo inteiro,
universal e inevitável.
Eu, múltiplo, meio de bem, meio de mal,
caminho sobre o impreciso das coisas
e dos sentimentos que despencam
neste dia sempre sobrenatural
que é o hoje vindo do ontem para o amanhã
qual as ondas deste oceano que me toca
vindo sei lá de onde para aportar em outras margens
amanhã.
E à revelia de cada segundo,
ingenuamente procuro o estático
naquilo tudo que se move por dentro de mim
enquanto que observo a complexidade da vida,
sempre inusitada, voraz, veloz, vaga, passageira…
E eu, sempre o primeiro a vivê-la nos segundos
que alicerçam a eternidade esperada.
Mas apesar de estranho ao dia
faço do desconhecido um achado
de sonhos que contaminam os olhares
repletos de descobertas e de segredos
que contagiam e direcionam o prosseguir.
E caminho pelos obstáculos
deste presente que se move
removendo os tentáculos das insônias
que noite a noite por entre o dia a dia
modelam a espera pelos amanhãs
que outros hojes virarão
para que tudo isso possa infinitamente
recomeçar.
Páginas 57, 58 e 59
O TEMPO E A PEDRA
No canto da pedra,
o canto do mar a bater seu encanto
de sons e espumas
que espalham perfumes
que em ondas e brisas
na praia inebriam um parco sonhar.
A pedra, que adora ficar no caminho
das águas do mundo e do mar,
é bem maior que o poeta
que só eterniza o poema
que faz de uma pedra uma onda
e da onda o sonhar,
que vai pela areia da praia
de cada infinito segundo
indiferente, às vezes, à dores do mundo
ou da eternidade das ondas
de cada pedaço de mar.
Página 60
OS JARDINS OS SONHOS
Somos um pouco do pouco que restou
de cada um que fomos em cada momento da vida
feita de pedaços e olhares e jardins e esperanças
que se despedaçam refazendo-nos
a cada instante que fica para trás.
E somos um pouco das paixões,
sempre inusitadas e iguais,
um pouco das felicidades, das tristezas,
das utopias que se esvaíram no tempo
que nos determina ineficazes
como pétalas de flores que não existem mais.
E meio a acertos e erros e semeaduras,
somos alguma coisa do arrependimento
por aquilo que não fizemos,
ora por medo, ora por alguma valentia falsa.
Somos um pouco de cada (in)decisão
que nos guinou um pouco mais para lá
ou um pouco mais para cá do que viramos
sempre de forma irreversível e irrefutável
como o galho que torto envelhece
e ainda assim frutifica apenas porque floresce.
A cada passo, contraditórios, semeamos
o nosso império de medos e contradições
acerca do que não vemos no além
nem mesmo do nosso jardim
e em decorrência dos sonhos que se desfazem
viramos pegadas ao vento em um deserto sem fim.
E pouco a pouco
um pouco de cada um
que acreditávamos que éramos
vai na lembrança construindo
um outro sempre múltiplo a cada instante
de cada presente que nos determina
a futuros vários, vorazes, velozes…
que vão ficando em algum canto do coração.
Mas somos um pouco do nosso quintal,
um pouco do nosso bem, do nosso mal.
Da roupa no varal, do cão de estimação,
da tradição, da propriedade que nos prende…
Somos um pouco daquilo tudo que nos rende
entre os nossos desprendimentos e ambições.
Somos muito do que queremos
e vivemos muito pouco do que temos
porque tememos os riscos
largando os sonhos sempre para um depois
que nunca chega
como a árvore que sonha com o mar
sempre plantada na beira de um rio,
como jardineiros de oásis
em um místico deserto que nunca existiu.
Páginas 61, 62 e 63
OS SONHOS E OS CORDÉIS
Inúteis os meus versos metrificam
aquilo tudo que não vejo sobre o que tento crer.
Esparsos sentimentos que me determinam
a cada fase da vida para que novos tormentos
venham acolher o que nem sei se resta
do que não fui sem ver, sendo.
Inviolável, o poema aguarda por dentro do que sinto
sentenciando-me, inacabado, ao impreciso.
As flores que brotam em mim
mostram-se daninhas.
Perco os afetos, feto que sou,
no útero do que tento construir com palavras
que não traduzem o imaginário do meu jardim.
Assim, me pressinto quase nada.
Um ser de véspera,
sem amanhãs ou passados,
embora todos os instantes resistam nas lembranças
que procuro não enxergar
sobre o que parcamente vejo das coisas.
Sou um índice que nada explica,
algo que se extraviou do caminho,
destino casual
decorrente das minhas imprecisões.
Contudo, não quero nada além do que estou.
Completo-me vazio a contemplar-me
mais do que aqueles
que disfarçam o vago
alimentados pela fome dos olhares
que vigiam as ruas
meio a noites de tempestades.
Traço o que quero para o meu dia
indiferente aos comandos
que me querem fantoche
placidamente adaptado aos cordéis.
Não! O meu livre arbítrio títere
não está à disposição dos mártires
ou das hipocrisias que encantam
os corações que já nasceram cruéis.
Páginas 64 e 65
PÁGINA
Às vezes, há a intuição de se virar a página.
Mesmo que seja pela simples curiosidade
de vermos a próxima,
em branco, meio a tanta escuridão.
E ainda que a iniciemos com parcas rasuras
ou com leves traços a nanquim
à caça de um desenho qualquer,
os sonhos a colorirão.
Muitas vezes temos que não temer
ou temer tanto que nos impulsione a partir.
Mesmo que o novo caminho
ainda não exista ou que a escuridão insista
e a sonhada estrada seja apenas
uma vaga vala de intenções de travessia
que o novo dia em nosso coração persista.
Algumas vezes, o novo pode ser uma ilusão,
mesmo que assustadoramente
possa demolir os ranços
do estágio insosso que gera
a apatia da estagnação.
Mas a página vindoura, virada
clama por existir alada,
ainda sem linhas, rimas,
ainda sem nada.
A página da vida é sempre inusitada,
só para mostrar o infinito
que é o reinventar do grito
que é fazer do silencioso aparente descaminho
que é decidi-la sozinho
para reencontrar na estrada
o canto do passarinho
que encanta o desencanto
para fazer bater as asas de todos
de volta pro mesmo ninho.
Páginas 66 e 67
PARA ALÉM DAS SOMBRAS
E na junção dos sonhos dos homens,
em sombras, no infinito,
fica estampada
a repercussão dos choros
como sons de um grito
que se expande
enquanto que em nós se esconde
para que no silêncio, em coro,
vire tão somente um intrigante delito.
Na metáfora, na anáfora
prosopopeisamos-nos coisas
e nos damos vida,
sentimentos que não temos
mas que executamos em cada conflito
para nos contrapormos às sombras
no subjetivo do que não foi dito.
Mímicos de nós nos desatamos
nas figuras das linguagens que imaginamos
como entre a mão e a corda há o atrito
que se propaga em vaga melodia
para que à luz de cada dia
a poesia como em um rito
se consagre em contraponto
como um verso divinal maldito
que caminha pela eternidade
divulgando a possibilidade
de que haja, àlém das sombras,
em cada parte, em cada arte
um pedaço do infinito.
Páginas 68 e 69
PAREDES DA ALMA
A conivência na convivência é a ordem do dia.
A verdade é impelida pela mentira que impera
em nome do bem para o exercício do mal
que opera a espera pelo sobrenatural.
As televisões filmam os medos
materializados nos olhares que silenciam
em anomalias múltiplas
para a anormalidade
da felicidade coisificada para poucos.
Viver virou um risco
e os segundos são contados
com risquinhos nas paredes
dos presídios das almas,
sem ressurreição ou arrependimento
à espera da liberdade de sentimento
e da eternidade que existe
em cada momento.
Página 70
PEDAÇO DE CÉU
Por entre as linhas das pipas
os sonhos cortantes nos instantes
do menino que se foi,
as descobertas, os esconderijos
nas trilhas das armadilhas,
o tremular daquilo que seria
um dia, a vida a se esvair
para dormir apenas nas lembranças.
A tarde morna no calor da infância fria
a distrair o olhar
no horizonte intenso
de procuras que bailam
enquanto que as pipas
cortam-se ao léu
em nome da liberdade
de cada pedaço de céu.
No menino que eu via
não havia
dia de desesperança.
A vida era uma dança
de rabiolas e sonhos
que ficaram na lembrança.
No peito,
um sentimento cortante,
um coração
feito uma pipa gigante
difícil de se empinar,
preso na linha do instante
que insiste em se quebrar.
Páginas 71 e 72
PÉTALAS AO VENTO
Todos os dias são novos, raros,
inusitados nos cheiros, nas harmonias e cores.
Espantosamente nascem únicos e envelhecidos
pelas sensações dos dias anteriores
e arrastam as histórias dos homens
para que novas paixões, descobertas, evoluções
aconteçam sempre no dia seguinte.
Os dias são flores no jardim do tempo.
Os instantes, pétalas que voam ao vento
que não volta e nunca é o mesmo.
O tempo é o vento da vida que se esvai.
Cabe no dia a intensidade do sonho,
a decisão do momento,
as esquinas que os sentimentos determinam,
os cruzamentos que nos indicam o aonde ir,
sem retorno ou remorsos meio às indecisões.
Os dias se entrelaçam
para que o tecido do tempo
retempere nossas almas
sedentas pelo dia seguinte
que vem renovado pelo descanso da noite
que adormece as lembranças do ontem
para suportarmos os sonhos do amanhã
que pode nem mesmo acontecer.
Páginas 73 e 74
POESIA DO DIA
Sobre o meu muro
um bem-te-vi
arranja os primeiros raios de sol
que quase ninguém percebe.
Latente
o tempo espalha folhas secas
pelas esquinas do meu quintal,
que como tantos,
guarda o que quase ninguém possui.
Do outro lado da calçada,
um olhar reflete um lembrete
de esperanças e medos
em minha incerta direção
que flutua entre um verso
e as coisas novas deste amanhecer.
A poesia do dia inédito
envelhece embrionária
e se disfarça em plágios
a cada inusitado instante
que não sobrevive às rotinas
do raiar nas sombras.
Repetitivo, me reinvento
revirando lembranças escusas
nos compartimentos da alma
que tenta me reencontrar
naquilo tudo que perdi em inúmeras outras manhãs
por não ter tido coragem, meramente,
de abraçar a vida por inteiro.
A poesia do dia novo acovarda-se
diante das incertezas
que não poetizam o vago
e aguardam o novo pôr do sol.
Páginas 75 e 76
RUA DOS DIAS
Pela rua dos dias
passam os impérios,
as idades, as cidades,
as maldades dos homens
e seus mistérios.
Pela rua dos dias
passam as pazes passageiras
que são prenúncios das guerras
que dormem em nossas trincheiras.
Pela rua dos dias
passam as lembranças
que dormem em nosso coração,
passam os sonhos,
mesmo quando não passam,
porque passa sempre a ilusão.
Pela rua dos dias,
a possibilidade efêmera
de eternidade ou de indigência,
por dentro ou além do mundo,
proporcional ou inversamente
à regência dos atos que cometemos
a cada segundo.
Na rua dos dias
pode existir contramão
e em sua margem, de passagem
uma multidão em viagem
fugindo da própria imagem de escuridão,
como se fosse a ilusão da miragem
em um deserto sem sol nem aragem
aonde até a linguagem carece de evolução.
Páginas 77 e 78
SEGUNDO PLANO
Um vida atrás
da palavra certa
para acalmar na alma
as incertezas.
O verso, sempre a um palmo da emoção exata,
perde-se no caminho
entre o sentimento e a mão
sem eternidade alguma.
Algumas tempestades que passaram,
alguns entes,
sonhos, vontades, algumas utopias
que não viraram coisa nenhuma.
Em cada encruzilhada, em cada trilha,
em cada estrela que brilha,
em cada instante
as opções que foram relegadas
a um segundo plano que jamais veio a existir.
Vamos por aqui, por ali?
Caminho sem destino certo,
implacável ir sem placas
e sem retornos nesse campo aberto.
A cada passo o infinito das possibilidades,
as portas de um livre arbítrio arbitrário
e eficaz.
Uma vida atrás do silêncio certo
para acalmar as palavras
que apontam para as incertezas
das miragens que refletem
um infinito sempre perto.
Páginas 79 e 80
SONHO SEM FIM
Alienado em lembranças
que já não procedem
vago um presente
de espera incalculável.
O vazio exato que me invade
é vago, vasto, profundo
e estranhamente inviolável.
A vida, uma rotina de noites e dias
sem uma ordem precisa.
Uma espécie de esperança
sobre o que não há.
No peito, uma dor ruim,
no olhar, o amor
que indica o mesmo intenso sentimento
que insiste em coexistir
com o que é real de forma inverossímil
como a flor que espia a rua presa em um jardim.
Os sentimentos,
as sensações incompartilháveis
vão dando norte ao tempo
que se impõe aos pesadelos
como se o fim de tudo
fosse o desconhecido
de um sonho que não teve fim.
Masmorra de alma,
degredo de liberdade ?
Denso olhar a procurar-se
na própria órbita
indiferente ao universo que o contém.
A realização sempre a um passo do querer,
o bem-querer distante,
a felicidade movediça sempre adiante
e o tempo a cada instante
a desencadear a vida
como o descarrilhar de um trem.
Páginas 81 e 82
TEIA DA VIDA
Defronte ao pôr do sol,
a vida ainda parece a mesma,
mas na teia da aranha
aparentemente estática
alguma coisa mudou.
Radiante, a divindade se impõe
aos olhares da insensatez humana,
embora a sedutora teia
seja o reflexo de quem espera
o alimento vivo para devorá-lo.
A natureza, única e eternamente virgem,
desdobra-se em recriações plenas,
que a aranha, insossa,
de seu esconderijo espreita.
Defronte ao pôr do sol,
o vento que suspira a brincalhona solidão
de um menino que passou
e que hoje se vê preso
a um tear de sonhos entrelaçados
qual um bicho peçonhento
que o distrai enquanto tece memórias
que não servem para ninguém.
O sol, a estrada e o mar de areia cristalina,
que em constância se movem,
são sempre os mesmos.
Apenas a teia da vida
lentamente a se mover
na intenção da captura.
O olhar, a timidez diante de um mundo estranho,
a raridade de cada sentimento único
também são eternamente os mesmos,
no homem e na aranha,
a nos repartir em múltiplos tentáculos
enquanto que partes de nós
se exterminam a cada segundo
no corpo que se renova
e nas lembranças que ficam
como se fossem múltiplas teias
do tempo que nos espreita
enquanto que distraídos,
na maior parte das manhãs,
não enxergamos
nem mesmo o pôr do sol.
Páginas 83 e 84
VÁLVULA DE ESCAPE
Durmo como quem, por quietude,
se alimenta do desligamento dos fatos
para que a reedição do dia seguinte
se estabeleça plena em um sonho de imprecisões
que desnorteiam a realidade
para apenas no espelho gerar dúvidas
entre a face que vejo
e os estranhos que carrego sem determiná-los
com a emoção que necessito para ser-me
sem sentir-me traidor.
As energias vagas da velhice
incandescem as juventudes
que a lembrança guarda por um tempo
e que depois esquece.
O limite do meu quarto
ou do meu tempo,
que faz fronteira com a rua
enquanto as horas badalam,
é o meu infinito e a minha liberdade.
Sonambulismo de alma.
Caminhar impreciso pela sala
nesta vastidão de sentimentos
que desdenham dos meus esconderijos.
As sexualidades, as vontades,
as ideologias, sonhos…
quase tudo em vão,
quase nada há mais no coração
que um dia se alimentou de paixões.
O vago que se deposita
sobre o fato de cada intuição
sedimenta o que a mente apenas tenta
sempre sem sentir
ou se comprometer por ter sentido
o permitido dos proibidos que nos desnorteiam.
Válvulas de escape
geram o sono necessário e absoluto
para o cumprimento
de cada instante de desligamento
enquanto não volta a poesia.
Daí a noite absoluta. Dia e noite
em um dormir pleno e necessário
à espera do raiar do olhar no novo dia.
Madrugadas e primaveras se confundem
com invernos irreversíveis.
Os nós em nós perpétuos
em cada pedacinho da existência
em múltiplas estações
indicam direções diversas.
Inquieto acordo em tempestade.
Passageiro de mim
caminho pelos cantos destas turbulências
e sobrevivo dos esquecimentos
para não ver que o coração
não se comporta com a devida quietude
rumo a sonhos de sabedoria
e desprendimentos que neutralizem
do vazio o afã
para que a vida se reinvente
distante dos olhares nos caminhos
que nos chamem para qualquer busca vã.
Páginas 85, 86 e 87
VEEMÊNCIA
A amplitude da minha linguagem
determina o tamanho
do meu medo, do meu muro
ou do meu infinito.
Ela acalanta o meu silêncio,
ilumina o meu escuro
e instiga
a veemência do meu grito.
Página 88
POEMAS PREMIADOS:
CARNAVAL
3º Prêmio Literário de Poesia Portal Amigos do Livro
Portal Amigos do Livro e Scortecci Editora
Publicação em Antologia
Concurso de Poesia A Palavra em Prisma
Prefeitura Municipal de Guarulhos-SP
Menção Honrosa
GEOGRAFIA DA ALMA
XXVIII Concurso de Poesias de Mogi Guaçu-SP
Biblioteca Municipal João XXIII
Publicação em Antologia
NANQUIM
5º Prêmio Literário de Poesia Portal Amigos do Livro
Portal Amigos do Livro e Scortecci Editora
Publicação em Antologia
O OÁSIS
1º Lugar No VIII Concurso Literário
Prêmio “Prof. Mário Clímaco”
Academia de Letras, Ciências e Artes de Ponte Nova-MG
O ARQUIPÉLAGO DO TEMPO
16ª Edição do Concurso de Poesias da CNEC – Capivari-SP
Campanha Nacional de Escolas da Comunidade
Publicação em Antologia
O BRINCO
XXI Concurso de Poesia – Tijuca-RJ
Academia de Letras e Artes de Paranapuã – ALAP
Medalha de Bronze
O INEFÁVEL DO TEMPO
VI CLIPP – Presidente Prudente – SP
Secretaria Municipal de Cultura e Turismo
Biblioteca Dr. Abelardo de Cerqueira César
Publicação em Antologia
O SONHO QUE AINDA RESTA
XXIV Concurso de Poesia
Academia de Letras e Artes de Paranapuã – ALAP
Menção Honrosa
O TEAR
3º lugar no VII Varal de Poesia UNIFAMMA
Faculdade Metropolitana de Maringá-PR
PARA ÁLEM DAS SOMBRAS
XXVIII Concurso de Poesia Brasil dos Reis-RJ
Ateneu Angrense de Letras e Artes
Publicação em Antologia
POESIA DO DIA
VIII CLIPP – Presidente Prudente – Ruth Campos
Secretaria Municipal de Cultura e Turismo
Biblioteca Municipal Dr. Abelardo de Cerqueira César
Publicação em Antologia
Páginas 91 e 92
ALGUMAS DENSAS OBSERVAÇÕES SOBRE
“A RUA DOS DIAS”, DE PAULO FRANCO
Bosco de Lima
Um livro que se constitui em Poemas que resgatam os tons da infância, alimentando a alma daquilo que fora e já não é mais, implicando outras coisas, que se entropia naquilo que se quer ser.
Palavras que vão sendo constituídas por outras palavras com sinonímia, fazendo ecos aos versos, tecendo os varais numa longa trilha de lençóis alvejados.
Observo ainda, no conjunto de poesias de Franco, um passado que se esconde no presente que alimenta o futuro. Mas o que procurar agora se o “eu” contido no passado insiste em permanecer? Resta então constituir esperanças para que o “eu” se encontre com ele mesmo em um futuro… qualquer.
Estranha vida esta que se deixa aprisionar. Mas como se libertar se o aprisionador é o próprio prisioneiro? Ou o coração que o prisioneiro não sabe… E se sabe, pratica renúncia do próprio saber.
Trata-se de um adensamento de palavras tão bem escolhidas para acobertar uma vida em luta, assim, tal vida parece menos sofrida, menos inglória e presente aos homens, geralmente impuros.
São tantas coisas guardadas na infância e na lembrança, são tantas coisas não ou mal resolvidas, que é preciso burlar tal tempestividade incerta para se equilibrar e ir adiante. Mas estas coisas marcam profundamente e querem insistir em ser, apesar de o poeta dizer não, e dizer sim, conciliando um passado irresoluto a um futuro inconsistente.
Em geral poemas brancos, mas cantados densamente, numa melodia interna. Os versos que se constroem rompem com uma primeira olhada do autor, que se quer e se faz maestro das palavras.
Mas de repente, um poema engajado, cantando as lutas inglórias que fazem parte das janelas do autor. Inconsistente luta circular que leva sempre a um mesmo lugar.
A rua dos dias são as janelas da alma do autor. Que olha absorto a continuidade da descrença e da matança que ele sempre lutou para desfolhá-las e superá-las.
A fragilidade do eu que se expressa na poesia é a busca do fortalecimento do ser, que se vê roído a cada caminhada, a cada obstáculo, a cada presente. A fuga do eu é estar no eu que se quer em outro, a busca de um amor utópico, a tentativa de se ver sem ser o eu e sem ser o outro.
O que consiste em existir e o que existiu em mim e eu não fiz? É preciso responder isto, mas o faço por meio da poesia, a única que é capaz de adulterar meu sentimentalismo e minha objetividade, me pondo livre para observar. Meu poema é a arma questionadora de mim mesmo.
O que une tais palavras jorradas por ironia, por dor e amor? O que unificam os versos e dão unidade aos poemas no decorrer das páginas que vão tremulando com tanta convicção? As ruas dos dias são os passados remotos ou presentes que guardam e acariciam a criança cerceada de possibilidades. As possibilidades de hoje são arregaçadas a ferro e fogo, ou com unhas e dentes, mas não esmorecem a força daquilo que não fui… daquilo que não flui.
Enfim, são poemas de “um menino que não existe mais”, porém, insiste em ser e viver naquele que escreve sobre o menino sem deixar de sê-lo. Daquele menino “que se foi” sem ter ido, permanecendo assim, aborrecendo o aborrecido poeta que gostaria de se ver livre do menino que insiste em ficar… somente porque o poeta dele necessita. Concluo com o enigmático verso franqueano: “vago um presente de espera incalculável”.
Bosco de Lima é Doutor em Educação pela PUC-SP e docente na Universidade Federal de Uberlândia.
Páginas 93, 94 e 95
Breve Biografia
Por Thaís Franco
PAULO FRANCO – Nascido em Santo André a 20 de agosto de 1960, passa a residir em Rio Grande da Serra a partir de 1964. Sua produção literária inicia-se ainda na infância. Em 1979, publica, pela Editora Formar, PLANO DE VÔO, seu primeiro livro de poesias, em parceria com Antônio Bosco e Dirceu Ramos. Em 1981, pela Milesi Editora, publica, com Antônio Bosco , o livro AI-5, poesia engajada, que representa o momento de transição à abertura política do país. Forma-se em Letras em 1983. Em 1986 efetiva-se como professor de Língua e Literatura na Rede Oficial de Ensino do Estado de São Paulo. Forma-se em Pedagogia em 1987. Em 1988 especializa-se em Supervisão Escolar. Casa-se com Rita Franco no mesmo ano. Nascem os filhos Thaís em 1989 e Vinícius em 1991. Atua como Diretor de diversas Escolas. Nos anos seguintes, dedica-se à criação de NOTAS DAS HORAS, publicado em 1995 pela Scortecci Editora. Em 1999 lança PÉTALAS DE INSÔNIA pela C. Cranchi – Editores. Em 2000 é eleito vereador em Rio Grande da Serra. Renuncia ao mandato em 2001. No mesmo ano lança PAISAGENS DO OLHAR, obra prefaciada por Frei Betto e editada pela Alpharrabio Edições. Muda-se em 2002 para Ribeirão Pires. Em 2005 publica em capítulos a fábula UMA ESCOLA FABULOSA no jornal Folha de Ribeirão. Em 2007 lança DO OUTRO LADO DO OUTRO, pela Espaço Editorial e em 2010 A QUARTA PAREDE pela Editora Multifoco, obra que teve diversos poemas premiados em nível nacional. De 2011 a 2014 produz artigos para a coluna Ponto Final da Revista Mais Conteúdo, vinculada ao Jornal Mais Notícias de Ribeirão Pires. Em 2012 publica, pela Scortecci Editora, A MÁSCARA NO ESPELHO: Uma Antologia Inacabada.
Páginas 97 e 98