
Scortecci Editora
“Eu sou o relógio efêmero da eternidade:
…pra quase tudo ainda é cedo
e pra sonhar
é quase sempre tarde.”
VERDADES SEM RESPOSTAS
A poesia deste poeta é tão marcante no seu como dizer criador; tão afirmativa nas buscas interiores, nos porquês da vida, seus significados e seus mistérios; tão denunciante dos desencantos do mundo – que, para além do poeta, transmuda-se ele, muitas vezes, em personagem das próprias criações. O fato de Paulo Franco se valer quase sempre da primeira pessoa poderia confirmar essa impressão. Quando não é esta a questão. É que ele – o poeta – torna-se quase epicentro da sua própria poesia, numa curiosa postura, fora e dentro dela, consequência da maneira arrebatadora como a constrói. E isto é particularmente notável.
Embora dividido em três partes, a primeira mais ampla e mais pessoal, a obra toda é una, que o versejar deste poeta é de uma espontaneidade rítmica personalíssima e o seu ângulo de observação, quer para o universo interior ou para o mundo que o cerca, é agudamente abrangente, impressionista, lírico e dorido. E surpreendente pelo alcance filosófico.
Vem de pronto a impressão primeira de que Paulo Franco, caminhando – não tergiversando – entre as verdades doídas da vida, caminha igualmente para o pessimismo, quando o fato é que o seu inconformismo tem muito contra a velocidade do tempo. “O Colecionador de Coisas”, ” O Medo Além do Muro”, “De Frente pra Vida”, poemas notáveis, dentre os muitos tomados ao acaso, são voleios desse estado de espírito do poeta entre a estática do momento flagrado e a precariedade de tudo, até dos sonhos vividos.
“Giro em torno de minha casa
como se ela fosse oi meu umbigo.”
(in O Medo Além do Muro)
Estes dois versos espelham bem a riqueza espiritual deste poeta. Ele nunca lamenta o tempo perdido; busca e quase que denuncia a incapacidade de a existência não dar valor à própria vida.
“Vejo o mundo caminhando
como um caminheiro
no deserto vê um cacto.”
(in O Cacto)
Muitos seriam os exemplos, ricos como este, para mostrar como o poeta é tão ele, é tão ricamente diferente.
Flagrantes como “Cela de Espera” ou “O Poço”, para só citar estes, trazem ao vivo quantas inquietações interiores, em lampejos mágicos. Vale-se o poeta – recurso personalíssimo – de uma expressividade metafórica oportuna e diluída ao correr dos versos, que os transmudam imediatamente em verdades sem respostas.
Paulo Franco é lírico, humano e – outra particularidade – despojado, no sentido mais nobre do termo. Com isto, sua poesia é uma criação e uma libertação.
Na terceira parte do livro exsurge, com mais vigor, o sentido de revolta contra as asperezas do mundo. O impacto se amplia porque a segunda parte é uma procura palpitante do inalcançável. Mais uma prova dos recursos criadores do poeta, somados aos seus sentimentos sutis ou arrebatadores.
Notas das Horas, tal como foi concebido e está posto, pede estudo mais detido e acurado. Porque estamos diante de um Poeta de expressão maior, senhor da sua linguagem e da sua Arte.
Que surpreende e arrebata.
Caio Porfírio Carneiro
PARTE I
ETERNO
TRANSEUNTE EFÊMERO
Não sou o que sonhei ou fui.
Sequer concretizei os versos pobres
da primeira infância.
…Tudo uma brincadeira, que jamais passou.
Hoje, permito-me esquecer que sou
um transeunte estranho
por dentro de minhas emoções.
Caminhos que se deformam
e em abismos se transformam
por dentro de mim.
E o tempo escorregadio
que não se deixa tocar…
Enquanto corro, morro
em seus labirintos
que deslizam no ar.
Eu sou o relógio efêmero da eternidade:
…pra quase tudo ainda é cedo
e pra sonhar
é quase sempre tarde.
página 9
DESENCONTRO
Ignoro a hora de partir
como quem parte
sem saber onde chegar.
Onde moro é meu presente
e o meu futuro ausente
pode ser outro lugar.
O ser que sou não sei
se ao todo posso conceber,
assim como não sei ser outro
ou simplesmente me deixar de ser.
Ignoro a hora de sorrir
como quem não sabe ao certo
quando vai chorar.
No onde estou não sei
por quanto vou estar,
mas se viver é
o que em mim
encontro,
a vida é um desencontro
e pode ser em outro canto
o mesmo desencanto
em qualquer outro lugar.
página 10
O COLECIONADOR DE COISAS
Instalo-me confortavelmente
entre os meus apetrechos de sala.
No estar vasculho minhas posses
em sonolento olhar que cambaleia
da parede ao piso reluzente que me espelha.
Sentença afã a de esperar a morte
entre os objetos que mofam…
Um neurótico colecionador de coisas
que não compram a felicidade.
Entre os pensamentos perco-me
a procurar-me na televisão
que me desliga o tempo inteiro.
Entretenimento cibernético
que disfarça o metafísico desta solidão.
…E amontoo-me entre as coisas que possuo,
confortavelmente, um apetrecho
a mofar enquanto espera a morte.
Um objeto que sofre entre os pensamentos
e perde-se a procurar-se meio ao metafísico
de uma solidão que, cibernética,
se esconde na televisão.
página 11
O MEDO ALÉM DO MURO
Giro em torno de minha casa
como se ela fosse o meu umbigo.
Espero que minhas máquinas
criem asas
e essas asas, minha casa,
sirvam-me de abrigo.
Conto os meus metais,
os quais não consegui,
e os belos desta arte
que eu não vejo aqui.
E, pra caminhar pela calçada
aqui nesta cidade de angústia,
há que se ter pra que se possa,
há que se ser posse e astúcia.
E eu, que nada tenho
além de um sonho,
além das coisas que acredito
e que proponho…
busco sempre
que a hora seja esta,
vasculhando pela cela no escuro
tudo o que possa ser fresta,
para o claro deste medo
além do muro.
página 12
DE FRENTE PRA VIDA
Da janela, de frente pra vida,
avisto os homens atravessando os dias.
Do coração persigo a poesia
e não consigo
entender os homens ou a vida
e nem ao menos o dia.
No olhar,
refletido o movimento da rua,
busco como num espelho
segurar o momento
na tentativa inútil de eternizá-lo
para entendê-lo.
Momento que persiste
em prosseguir sem existir,
momento que passou
enquanto que da janela,
de frente pra vida,
espreito os homens
que me espreitam,
sem entendermos a vida,
sem ao menos entendermo-nos.
página 13
O TREM COMUM
Quero mais que estar neste silêncio
perseguindo a multidão,
que ser menino passageiro
romeirando a procissão.
Quero mais que essa missão de estar,
que ser cristão,
que ser ou não
um cidadão comum.
Quero mais
que erguer a profissão de pedra,
que ser um ser
quer a dor em si
por sonho medra.
Quero mais que o querer comum,
que ser feliz com coisas fúteis
rindo sempre
boquiaberto a qualquer um.
Quero mais que a poesia que preguei,
que o masoquismo que herdei nos cantos,
que os encantos dos meus “ismos”,
que os meus ídolos, que os meus prantos.
Quero mais é me seguir
pra não seguir ninguém.
Aonde ir está marcado nos meus trilhos
como se os meus versos
fossem os vagões de um trem.
página 14
A PROCURA
Olho a rua
e os rumores nos olhares
continuam passando…
Os homens, debruçados nos muros,
espreitam o escuro,
como que à espera do futuro
que não vem.
Quase nem tudo está perdido
e tudo que avisto é procura
do que não vejo.
Não vejo o silêncio
que atravessa os homens
acorrentados de um medo
que desconhecem.
Amanhecem como dormem:
Por necessidade meramente fisiológica,
sem lógica alguma, sem métrica, sem rima
ou necessidade metafísica de vida
que camufle tanta morte.
Olho a rua
e os rumores nas almas
doem como um parto passado da hora.
Cada olhar ora um desespero
que ao certo desconhece, no presente,
se desaba do futuro ou vem de outrora.
página 15
INFERNO DE GIZ
Eu que sempre de mentira mostro
o medo pra moldar a tudo,
escondendo que tem medo
quem o medo a todos mostra.
E, tendo medo do futuro,
do presente claro e do passado escuro,
pra iludir, me iludo.
Eu, que sempre no segredo escondo
um conto e um canudo inútil,
pra esconder que me exponho
num segredo fútil…
Que sempre de mentira invento
uma verdade do outro mundo
pra iludir os meus intentos
e os tormentos do futuro.
E, pra apagar o claro e acender o escuro,
atrás do muro me arrebento
e pra iludir, me iludo.
Eu que nunca de verdade encontro
um mentira aos desencontros,
desencantos do que somos,
perseguindo o futuro, apagando o passado
e desenhando o presente,
que se mescla em claro e escuro.
Que sempre de mentira escuto
uma verdade e me assusto
e assustado me sustento,
enfrentando os desafios que desabam do futuro
pro presente claro no passado escuro,
enquanto que pra iludir, me iludo.
Eu que nunca o sempre encontro,
perseguindo a eternidade,
modelando mentiras, violando verdades,
me escondendo do mundo e demolindo meus muros,
tendo medo do claro e do presente futuro.
Tenho medo do tempo e corro,
me escondendo no escuro.
Quando penso estar vivo, morro,
e quando penso iludir, me iludo.
páginas 16 e 17
TRAVESSURAS DA IMAGINAÇÃO
Eu queria um mundo de brinquedo,
onde sorrir não fosse quase que pecado.
Queria um sonho imaginado à luz do dia,
onde a poesia não fosse apenas
uma ilusão feliz a mais.
Queria imaginar um cais em caracol
em volta do universo,
onde os planetas fossem refletores
de um gigantesco circo sem lei de gravidade,
sem lei pra ser cumprida ou burlada,
sem lei de não, onde o sim fizesse valer
todas as travessuras da imaginação
…e mais nada.
Queria um mundo sem adultérios,
onde os adultos, sem mistérios,
fossem eternamente crianças
e a mente humana simplesmente
uma semente de paz e esperanças.
Queria um sonho de brinquedo
que fosse verdade,
uma verdade de brincadeira,
pra se brincar de mentirinha
que a liberdade não existe.
E que a liberdade
fosse a lei maior da sabedoria humana,
a única sabedoria possível
no impossível a ser atingido
na lei da imaginação.
páginas 18 e 19
MENINO PASSAGEIRO
Vim pra ser menino passageiro
na loucura do universo de uma flor;
vim pra desmanchar o cativeiro
em que vivem as ovelhas do Senhor.
Vim pra te dizer, meu bem,
que está passando o trem,
que a hora de orar
o horror da vida é agora.
Vim pra ir embora logo,
com você a bordo de mim,
pra ser sem fim,
filmar no peito o pranto
que molesta o canto dos homens
e atesta o tédio de viver.
Vim pra conceber que ser um ser
é ser feliz
na medida e no possível do amor.
Vim pra ser senhor e fui menino,
meninando pra fazer você dormir
e dominar seu medo.
Vim pra debochar no picadeiro
desse circo de palhaços
construtores de palácios,
laços de concreto
sem graça pra criança
que quer mais
é ver o teto da palhoça
ser o céu
cercando a praça do planeta
como um véu azul.
Páginas 20 e 21
O CACTO
Vejo o mundo caminhando
como um caminheiro
no deserto vê um cacto.
Vejo esgoto escorrendo
sob nuvens que passeiam
e pessoas rastejando feito ratos.
Vejo a flor
que brota desse esgoto
e a dor que, feito nuvem,
esgota a flor do rosto.
Vejo os restos
dos sentidos que ensinaram
que existiam
se tornarem continência
e a flor secando pelo rosto
como um cacto em redor da ausência.
Página 22
VERDADES
Toda verdade
que eu procuro ver
é a liberdade
que eu procuro ter.
Toda mentira
que me fazem crer
é a verdade
que imagino ser.
Mas se a mentira
na verdade eu posso ter,
será verdade
que a mentira eu posso ver ?
E se a mentira
na verdade eu vou viver,
será mentira
que a verdade eu não vou ter ?
E se a verdade
na mentira eu posso ver,
toda mentira é verdade
e, de mentira,
a verdade eu vou viver.
Página 23
PROJÉTEIS
Não sei conviver.
Viver é algo que me aflige,
mas finjo não saber.
Os dias, apressados,
perseguindo o tempo,
passam pontiagudos
por dentro do peito,
enquanto eu me pergunto:
Para onde vão ?
Os homens atravessam o planeta
num silêncio de concreto,
acorrentando os sonhos
no cimento dos projetos,
com projéteis desfilando
pelo esgoto das calçadas,
enquanto eu me pergunto:
Para onde vão ?
Nas catedrais,
deuses rivais
disputam discípulos banais
de um bando, que ao inferno
vão fazendo contrabando da miséria,
enquanto pagam pela fé
que veem em vão…
Enquanto eu me pergunto:
Para onde vão ?
Página 24
O ESTAR
Em qualquer parte do mundo
estamos sós…
A multidão
passeia em nossos corações,
mas caminhamos indecisos
por dentro de nós.
A solidão é tão grande
quanto as cidades,
tão forte quanto os edifícios,
tão vazia quanto os homens.
Estar aqui
ou em Londres
não preenche nada…
um oco do tamanho do mundo
continua acontecendo
no avesso das palavras
que inflamam nossas emoções
em risos ou porções de morte,
que servimos a quem nos vê,
cínicos, dentro do estar,
fora do ser que é só.
Página 25
PORTAS DO MEDO
Eu estive em vão por aí
procurando um canto no mar,
descobrindo que o existir
é bem mais do que a vida passar.
Pelas guerras que sobrevivi,
pelos versos que não escrevi,
pelos homens que morrem em vão
na varanda do meu coração.
Pela frágil criança bulindo
em meu peito num lindo brinquedo,
construindo do pranto um sorriso
e inventando do sonho um segredo.
Vou entrando nas portas do medo,
clareando a janela dos cegos
e se nego no palco o enredo
à plateia faminta eu me entrego.
São estranhas doçuras da lida
que me fazem fazer outro verso,
pra tornar da indigência da vida
qualquer coisa entre o fel e o universo.
E se acaso na noite a verdade
for mais forte que a minha aflição,
faço frases com a liberdade
pra fingir que não sou solidão.
O menino que brinca no espelho
está velho pra ser ilusão,
sua rima não tem mais conselho
pra plantar em nenhum coração.
Páginas 26 e 27
JOGO A DOIS
Contamos as horas
enquanto lavamos os sonhos,
enxugamos as mágoas
entre o silêncio e os pratos
da noite passada.
Estendemos o novo dia
sem vermos que o sol
ainda não se pôs
e o resto da noite
é apenas um pedaço a mais
de escuridão.
Vasculhamos o pó do coração
enquanto varremos os resíduos da sala
que despencam da TV
onde assistimos um jogo a dois
no qual o indivíduo não se vê.
Arrumamos a cama vazia
enquanto vagamente vem
a ilusão que já terminou
com o sonho bem comportado
num canto da penteadeira
(não sei ao certo quem o arrumou).
Na escrivaninha, trêmula,
você se vê entre o teclado
e os meus dedos,
que prendem o seu coração,
trituram os instantes
que ao poema já não servem mais.
O sorriso, apenas uma válvula de escape
que não conseguimos fechar,
como a torneira que pinga incessante,
enquanto o coração é uma descarga
de dores
que se esvaem a cada instante.
A porta pode não se abrir
e ficaremos assim,
presos na propriedade
de termo-nos
sem termos
uma janela para a liberdade
de sermos.
Páginas 28 e 29
VULTO METAFÍSICO DO AMOR
Corre a minha mão pelo teu medo
e em tua face escorre qual sereno
entre os segredos que escondes
pra iludir os meus inventos sobre ti.
Disfarças que não sentes
o que sou de indiferente
a tatuar na tua mente
a imagem à tua frente,
que não é o que querias,
pra que as tuas agonias
deslizassem do teu ser.
Então, queres que eu seja mais ameno
e a minha mão, em teu terreno,
não te sinta se perdendo
em teu tédio qual sereno
a gotejar da tua face,
e não sabendo
que o vulto metafísico do amor é tão pequeno.
…E quem sabe tu serenes
lágrimas de tédio
e, serena, a tua face
resplandeça, no meu céu,
o teu inferno.
Página 30
INSTANTES DE PEDRA
Pegamos um bonde,
no tempo em que já bonde
não havia,
e partimos.
Sorrimo-nos como quem teme
o que não sabe
e, afugentando o medo num abraço,
apertamos o passo e fugimos.
Sorrimo-nos de novo
pelo bando de sonhos
que arrastávamos.
Sonhávamos, em especial,
com o especial que imaginávamos
de cada sonho.
Éramos, possivelmente,
personagens de concreto
no abstrato daquele instante
que se transformou em pedra.
Alguma coisa parou
enquanto o bonde passava ?
Alguma coisa faltou
nos sonhos que cada um sonhava ?
Página 31
DEFRONTE AO PÔR-DO-SOL
Coexistimos hoje na incerteza
sobre o que seja certo amanhã.
Avistamos o dia seguinte
como uma nuvem defronte ao pôr-do-sol.
A dois, o nosso segredo coletivo
nos parece menos íntimo
e o mundo já nos pode descobrir.
Ainda nos perguntamos
se morremos socialmente
ou se a espera criminosa,
neste arrastar de sonhos,
não nos deixa ver
o pôr-do-sol que procuramos.
O outro dia pode ser o futuro,
mas no hoje a espera
é apenas um infinito a mais.
Os olhares que desperdiçamos,
neste inconstante vago que é o olhar a rua
sem nada a vasculhar por dentro de nós,
perdem-se entre as pessoas
que, fugitivas, se colidem, quase que por instinto.
As amarras em nossos corações
experimentam ainda golpes de incertezas…
Mergulhados em nós,
ainda nos debatemos para fazer amor
e relembramos que a emoção revela a vida
e que se a vida em si não se revela,
relegado à morte estará o ser
que habita esta infindável cela.
Páginas 32 e 33
PORTAS PARA A ESCURIDÃO
As portas que vemos,
do claro para a escuridão,
são incertezas.
As opções de idas, várias,
sutilmente nos deslocam
no vazio dos dias,
enquanto buscamos as certezas
sobre o que seja certo das incertezas
que temos.
O inimigo pode estar ao lado,
disfarçado de sorte,
amordaçado de loucura,
sorrindo, fantasiado de doçura
ou morte… não sei!
O inimigo pode ser a imagem obscura,
o silêncio
refletido no espelho
de quem foge ou luta,
enlouquecido pelo reflexo de si.
Encontrar a saída
possivelmente
seja não abrir a porta
e, por dentro,
clarear a escuridão
que o coração aborta.
Página 34
IMAGENS
Imagens que nos reportam
ao que não vivemos…
Passados que não vemos mais,
mais do que deixou de existir
quando o presente
exibia-nos contradições
invisíveis ao que seríamos.
Os pesadelos eram construções
inimagináveis ao que víamos.
A escuridão
a encurralar os instantes
que esperávamos,
mas que suportá-los
não poder-se-ia.
Porta automática dos dias
a engolir-nos
no intransponível nível
material dos objetos
que reportar-nos-ão
ao que viveremos
para outros passados
que certamente virão.
Página 35
TENTATIVAS DE VIDA
Acuados pelo instante
vasculhamos nossas ilusões
procurando do outro lado da janela
a chave para a porta que não temos.
Quase tudo trancado
do lado de dentro da face…
Olhos fechados que filtram
a claridade da existência.
Nem tudo está perdido!
Ainda percebemos emoções que se debatem
em algum canto do coração.
Agonizam tentativas de vida
em nossa morte coletiva.
Nem tudo está perdido!
Mas perdemos o jeito pra felicidade,
enquanto perdemos o tempo que não temos
contando nossos materiais preciosos,
colorindo de novo o velho das tradições,
construindo famílias e contradições
que durante milênios representaram
a cadeia dos sonhos.
Nem tudo está perdido!
Agonizam tentativas de vida
acuadas pelo instante,
enquanto vasculhamos nossas ilusões
trancadas do lado de dentro da face,
filtradas pela escuridão do lar,
as quais se debatem em nossa morte coletiva.
Páginas 36 e 37
CELA DE ESPERA
Tem alguma coisa quebrada na sala
e não sei ao certo se é o meu amor.
A porta do quarto nas horas se fechou
e, quando abriu, lá quem estava não se encontrou.
Alguém pulou dos andares do lar
nos braços de alguém
que não estava ali.
Não estava ali o ser que avistava o edifício.
Não estava ali o ser que estava
porque é difícil
Tem alguma coisa quebrada na sala
e não sei ao certo se é o meu amor.
Ele pulou de tudo o que era difícil
e em orifícios se multiplicou
qual tudo aquilo
que jamais eu sou.
Tem alguma coisa quebrada no que sou.
Na sala, ao certo, o meu amor passou.
Notas nas horas ouço,
qual acordes que acordam
de uma sinfonia de espera. E dor.
Tem alguma coisa quebrada na sala.
Pranto. Tédio tanto…
…E não sei ao certo se é o meu amor.
Página 38
O ABSOLUTO DO NADA
Tudo provisório…
Uma vida de provisórios
absolutos.
Sorrisos em luto eterno
que trafegam provisoriamente
pelas avenidas da cidade provisória.
Ideologias que desfilam
em nossas cabeças,
como se fossem permanentes.
Pessoas que morrem por elas,
como se fossem imponentes
verdades absolutas…
e passam…
as pessoas e as ideologias.
Amores que prosperam
enraizados no nada
para se tornarem tudo
…bestialmente…
Amores que morrem
minguados, em rancores
que descolorem a paz que os cria
e os transforma em guerra fria.
Tudo artificialmente absoluto
e eternamente provisório.
Página 39
O POÇO
Restam de mim parábolas obscuras,
pensamentos escusos de poetas
que tentaram metáfora com política
e foram mortos
num oceano de incertezas metonímicas.
No poço, resta a lama
que não se pode beber,
e embebedar-se dela
é entregar-se à loucura
das massas insanas.
A hipocrisia humana refletida em mim
mais uma vez me cansa…
e, perdido entre o medo e a fortaleza,
tento fugir
entregando todas as fraquezas que escondo.
…Mas o inimigo vem por dentro do que sinto,
o sistema de amarras é imenso…
e lá num canto, no fundo do poço,
meu esconderijo é descoberto
e minha metáfora morre.
Página 40
O SOBRENATURAL
…Anonimamente morrer
no meio da noite,
entre os escombros dos cômodos
de um pesadelo.
…E na madrugada
sorrir flacidamente
aos que olharem
o meu corpo físico
no desconforto metafísico
da morte.
E, compassadamente, entre os instantes
a ausência do hálito
pode parecer normal.
A inexistência dos hábitos
(levantar, banheiro, sorrir
e executar o dia)
pode parecer normal.
A ausência da vida
pode parecer normal
e, compassadamente, entre os instantes
a vida pode ressurgir da morte,
anonimamente,
entre os escombros do tédio
sobrenatural.
Página 41
OUTRAS FORMAS
Outras formas de verdade
e de inventar felicidade
neste escuro de mentiras,
iras, sonhos, solidão.
Outros grilos neste escuro,
outros passos, outros muros,
outras formas de carícias,
vil malícias de viver esta prisão.
Inventar outra ternura,
outra fonte pra essa cura,
outra porta pra esse medo,
outro segredo e outra loucura.
Outro pranto pra essa face
que renove este disfarce,
outro sonho pra ser guia,
outro dia e outra razão.
Outro sim e outro não,
outras formas de ilusão,
outro poema mentiroso
de verdades e outro tesão.
Outras formas de estar vivo,
outras famas, outros livros,
outras camas neste quarto,
outro parto e outra dor.
Outro dia neste eterno,
outro riso e outro terno,
outro deus e outros pecados,
outro fado e outro inferno.
Página 43
PALCO MÁGICO
O coração se entrega ao riso
num cinismo atômico
de um palhaço trágico
que num pranto cômico
faz da vida um palco
mágico.
O palhaço
se entrega ao pranto
em um palco acômico
e num riso mágico
de silêncio atômico
faz do sonho um parto
trágico.
O coração
se entrega ao pranto
num silêncio cômico
de um palhaço frágil
que num palco atômico
faz da vida um sonho
mágico.
O palhaço
se entrega ao riso
feito um sino acômico
num momento mágico
e num pranto atômico
faz da vida um sonho
trágico.
Página 44
RETRATO DE MARFIM
Meus pais perdoem se insisto
em devorar minha aflição,
se o mundo é velho e avisto
um sol brotando em minha mão.
Se a caminhada foi preciso
pra devastar tanta ilusão,
é que no falso do meu riso
ativo a flor do coração.
Perdoem minhas desventuras
enquanto estive por aí,
pingando o pó das amarguras
no amor do colo que perdi.
Mainha, veja no retrato
o seu menino de marfim,
recorte um verso do meu quarto
e plante um homem no jardim.
O tempo que passou é nunca mais,
perdido nos caminhos da paixão,
e os filhos dos seus filhos são iguais
trilhando o mundo em mesma direção…
Que os sonhos, pra quem sonha,
são reais…
e a vida pós sonhos
é ilusão.
Página 45
MARCAS
Peço desculpas pela vida que te dei.
Meu filho, é parca,
mas foi tudo que encontrei.
Eu vejo as marcas pela face do que esperas,
mas eu sei que são quimeras,
velhos sonhos que inventei.
Peço desculpas pro futuro, eternamente.
Em minha mente tu refletes o que fui
quando buscava no meu pai a minha imagem,
e fui vendo que a miragem desabava no que sou.
Peço desculpas pelas marcas que deixei
em tua fronte, qual uma fonte que nem sei…
quanto alimenta as raízes do meu sonho
qual os versos em que exponho
as feridas do meu ser.
E tu vês na minha imagem semelhança
com o que alcança, no teu sonho, teu herói…
É só criança que tem medo da alegria,
pois já sabe que ela um dia
pode ser passado, e dói.
E crescerás, serás a pedra que hoje estou,
terás sonhado utopias sem valor.
Então dirás, mirando os sonhos do teu filho:
Tu serás, um certo dia,
a dor de pedra que hoje eu sou.
Página 46
VELOCIDADE DAS HORAS
…E a gente não larga essa velocidade
que retarda o dia,
essa pressa deformada em agonia,
que nos faz perder
o pouco tempo que temos…
E velozes não vemos
que a felicidade é lenta.
Atropelamos a velocidade das horas,
realizando as infindáveis tarefas
que alimentam o fútil do estar
e ridicularizam o ser.
Há um desalento em quase tudo…
A calma por necessidade
a fabricar o riso,
que rumina o aceitável das convivências.
Diante de conveniências afãs
colidimo-nos cotidianamente
em epidêmica transfiguração facial
e, ao longe, o olhar perdendo-se
pesa-nos,
atropelando o eterno
na velocidade dos instantes.
Página 47
PARTE II
ENTRE O CONCRETO E O ABSTRATO
ETERNO EFÊMERO
E finalmente o silêncio
de ter conseguido…
a paz das missões vencidas
mesmo diante de vitórias relativas,
de representações diversas
de um estado feliz engendrado do concreto,
do sólido dos objetos capitais
e dos padrões sociais
que sangram a felicidade da posse.
Finalmente o ser feliz pela vitória do status,
do período transitório de poder
ter dos objetos a satisfação quase que metafísica
de um efêmero
mais que verdadeiro,
dentre as mentiras, as quais imaginamos
para depois do diante seguinte.
É finalmente o peito aberto
para retransar a máquina do coração,
funcionar os artifícios dos sentimentos sem padrão
e construir amor fazendo-o de posse
e, se entregando, ir a esta posse
como uma pose ao escultor
a eternizá-la.
Página 51
IDENTIFICÁVEL INSTANTE DO ENTRE
…A sensação do estar entre…
Não aqui, nem ali, mas entre!
Absolutamente indiferente ao mundo,
estar em lugar algum em nenhum segundo.
…Como, entre o passado e o futuro, o presente
que nunca existe ou pelo menos jamais está a não ser entre.
Entre a metáfora e a metonímia, algo que não diga nada,
entre o ato e o amor no ódio, entre a derrota e o pódio,
entre os orgasmos, o tesão
entre as quatro pernas de dois num coração, entre a cama e a mão.
Entre a contradição do sim
a cada não que não vem sim,
a cada sim que não vem não
e a cada contradição que vem
para gerar a seguinte.
E seguindo ao dia, o dia
que está entre as noites,
que estão entre os dias,
que correm pelo tempo entre si
e que se relacionam sem contactarem-se,
a não ser no identificável instante do entre.
Nas entrelinhas de mim,
o entre a dor e a felicidade
projetada de forma metafísica
que entre dores e projetos não existe.
Entre você e eu o entre e feche a porta,
o entre e fique,
o entre e apague a luz entre os instantes.
Entre eu e meus atos diante do mundo,
um intervalo vazio de esperança
que se faz perseguir
entre as verdades que minto pra existir.
Entre os ponteiros que conto pra dormir,
entre as insônias que enfrento
pra esquecer este descaso de existir
entre tudo o que não faz sentido real.
Páginas 52 e 53
ENTRE O CONCRETO E O ABSTRATO
Por mais que eu não te encontre
no universo vazio
das ruas que percorro,
por mais que eu desacate a mim
nos mesmo pesadelos,
enquanto vivo, morro.
Por mais que o meu espelho negue,
por mais que eu não me entregue à vida,
por mais que a senha proibida eu reconheça,
por mais que eu permaneça assim calado
e quase morto frete aos edifícios,
e o compromisso de estar vivo
cobre as emoções que eu devo cometer.
Por mais mais que eu tente ser concreto
eu me procuro no abstrato
e tenho medo…
Por mais que eu não me encontre,
por mais que eu não me conte tudo,
por mais que as leis do mundo
cerquem-me num muro de concreto e ambição.
Por mais que eu siga em vão,
eu te procuro
além do muro,
entre o concreto e o abstrato
do que é ser feliz ou não.
Página 54
PARTE III
EFÊMERO
ANOMALIAS
Obscenos cenários de gente,
anomalias sociais
que se confundem
no obscuro das faces
que estranhamente se fundem.
Formas geométricas
que formam
fisionomias medonhas,
melancolias, gente bizarra
que no abstrato das ambições
ainda sonha.
Edifício de medos,
tédios que se empilham
num amontoado de iras
que se cruzam
num silêncio de poucas palavras.
Frases perdidas
que escapam do significado das bocas,
que, mortas, cospem semânticas anormais
entre catarros e automóveis,
bucólicos seres que se movem
em rançosos vícios e morais.
Página 57
AS MÚLTIPLAS DIREÇÕES DO VENTO
Quero correr pela cidade
e não ver que a liberdade morreu
meio ao concreto de Deus,
que nada fez.
Homens de cimento e motor
pelas esquinas, nas filas,
entrincheirados na dor
que a vida tem.
Bizarros desfilantes sem tempo
que correm entre os cigarros,
faróis e carros sem intento,
pedintes, guardas que pedem documento,
e, como as múltiplas direções do vento,
não se sabe mais quem vai ou vem.
Quero correr desta cidade
e não ser mais um artigo no jornal,
mais nenhum bem e nem o mal,
não quero ser tudo o que é,
não quero ser mais um artigo desta lei
ou instrumento desta fé
do que não sei.
Página 58
QUARTEL DAS FACES
Cada face um ferimento,
um espelho a mais que sangra.
Cidade feita de edifícios e tédios,
ruídos que interferem na emoção
que, presa, o ódio acirra.
A frase sem saliva morre
atormentada pelo grito que não sai
e enclausurado mirra.
Instantes que atropelam risos
eternizando madrugadas de insônia.
Entre as vitrines vê-se prostitutas e garis
que, em tédio, tentam um suicídio
que não vem nas páginas
dos principais jornais da metrópole.
Homens hostis que cambaleiam
entre fezes e viaturas sem rumo.
Notícias mortas sobre o mundo
dos mortos da noite passada
desfilam entre o sol e jornaleiros
que não chegam a ser notícia.
Jornais de ontem ou de séculos atrás
trazendo o céptico desespero da existência
que acaba nominalmente com o CIC dos homens,
mas não acaba com a solidão que os supera.
Página 59.
OUTROS TANTOS
Somos tantos
e, de tão iguais que somos,
não supomos
o poder que temos.
Somos bando e temos medo,
somos sonhos
e o sopro que nos leva é ágil
pra gerar da nossa prece
um pranto igual.
Frutos da mesma reza,
ervas do mesmo mal,
pingos da mesma chuva
conspirando um temporal.
E, de pequenos que somos,
somamos nos sonhos
a sobra do que produzimos,
perdidos nos hinos passamos pingentes,
pingando os detritos dos lixos malditos
que a custo engolimos pra sobreviver.
Somos tantos
e, de tontos que somos,
não somamos
o poder que temos.
Tememos a fúria,
a loucura, a luxúria,
vendemos moldura
da face de Deus.
Oramos na umbanda,
marchamos na banda
e dizemos no samba
que somos ateus.
Frutos da mesma reza,
ervas do mesmo mal,
pingos da mesmo chuva
conspirando um temporal.
Página 60 e 61
PROFISSÃO DE PEDRA
Ao ser que tem por profissão a pedra
e que de pranto enfeita a dor que medra
enquanto pra ser gente feito germe geme
pra ajeitar a terra e edificar o mundo.
Ser que ao sol é mudo
e tem no ofício o difícil sacrifício
de moldar o latifúndio.
Enquanto empilha a pedra, desintegra a vida
observando como um muro a flor murchando.
Ser de pedra ao sol marchando,
marmitando o sarro da sarjeta
e aconcretando o sonho feito em barro
amassado pela mão
que ao medo a raiva injeta enrijecendo o riso
morto em quem vegeta pra fingir que é vivo.
Nasce em seu peito um canto ao coração que é calo
amortecendo a voz que cala e acalma a alma
num cimento magro de um silêncio mágico
de quem já morreu.
Na face um canto ateu, num canto um violão.
No prato o fel de um pranto,
na parede um santo de tijolo e oração.
Na ração a dor que gera a morte
pelo pão que falta frente à mesa farta
e pela mão que implora pela sorte e pelo hora
de ser pedra em paz.
Páginas 62 e 63
PROCISSÃO
Menino magro
ouvindo um hino sacro
em procissão.
Menino fraco
seguindo a romaria
em oração.
Menino coração
filho de maria magra
fruto de josé da estrada
meu irmão.
Menino homem
filho de maria pobre
cativando a fome
com um pingo d’água.
Menino feito em mágoa
catingando a alma
e esperando a vida melhorar.
Menino de chorar
filho de maria e eu,
menino de orar
antes de nascer morreu.
Menino ateu
no tempo e na caatinga
com catinga
de quem não nasceu.
Menino retirante
com mania de igualdade,
pau-de-arara mão de obra
germinando a fome da cidade.
Menino lindo
construindo o hino da revolução
e dividindo a terra
pra plantar o trigo
e repartir o pão.
Páginas 64 e 65
TÚMULOS DE PAZ
Há os que carregam pedras
e os que modelam belas esculturas.
Há os que escavam terra
pra aterrar a vida
que depois da morte
habita em barro as sepulturas.
Há os que militam Deus
e que têm das alturas
o poder do eterno
e que vendendo a fuga
para o céu do inferno
fazem dos seus templos túmulos de paz.
Há os que militam pedras
e os que modelam deuses em esculturas.
Há os que escavam o eterno
pra aterrar o inferno
que depois da morte
habita em paz as sepulturas.
Há os que carregam Deus
e os que modelam templos nas alturas.
Há os que escavam o inferno
pra encontrar o eterno
e ter o céu nas sepulturas.
Página 67
LINHA DE PRODUÇÃO
Imagine a carência dessa gente…
Multidão que quando sabe
sofre
e se não sabe pasta sem saber
e morre
produzindo o cobre do poder.
Os que sabem sofrem por saber
que os edifícios
brotam da miséria
como se a fome
fosse a fórmula
do poder.
Os que não sabem
vivem pra morrer
e morrem pra colher
a vida que o poder consome
pra gerar do homem podridão
e produzir
dos filhos deste mesmo homem
pobres que procriem pobres
peças dessa produção.
Página 67
GENTE QUE PASSA
Tem gente que passa
tem gente que pensa
tem gente que pasta
uma vida imensa
movendo de graça
a indústria e a crença
bulindo na graxa
sem ver recompensa
bebendo cachaça
e morrendo na prensa.
Tem gente que pensa
bebendo cachaça
que é recompensa
o bulir na graxa
da indústria da crença
tem gente que gasta
uma vida imensa
no tempo que passa
morrendo de graça
e vivendo na prensa.
Tem gente que pasta
tem gente que pensa
tem gente que passa
uma vida imensa
bulindo na graxa
morrendo na prensa
movendo de graça
a indústria da crença
e bebendo cachaça
como recompensa.
Tem gente que é massa
morrendo de crença
tem gente que gasta
como recompensa
por ter tanta graça
uma vida imensa
mexendo na graxa
bulindo na prensa
e vivendo cachaça
por gente que pensa.
Tem gente que arrasta
uma vida imensa
morrendo na graxa
e movendo a prensa
tem gente que pasta
bulindo na crença
e bebendo cachaça
tem gente que pensa
que a vida é de graça
como recompensa.
Páginas 68 e 69
ARRASTANDO A MASSA
Movendo a vida passa a massa
amassando a raiva no suor do rosto,
arrastando a raça
no esgoto roto dessa multidão.
Movendo a pasta que contém a graxa
e o suor da mão,
a fome que retém o riso e o minguado pão,
o coração que já não pulsa
a ilusão passada sobre um mundo bom.
Movendo a massa
amassando a casta
distribui na praça
o que contém a pasta
da revolução.
Morrendo a raça de inanição,
movendo o povo que produz a massa
sem comer do pão,
massa composta de sangue
para o anonimato da população.
Movendo a pasta do desempregado
com CIC, sonho e certidão,
movendo a massa que modela o mundo,
que consome e mata
quem constrói a fundo essa imensidão.
Movendo vai o homem
que é massa em construção,
movendo vai a pasta
que empacota o homem
e produz a marca
dessa escravidão.
Movendo a massa
amassando a casta
distribui na praça
o que contém a pasta
da revolução.
Páginas 70 e 71
OCULTO, O GRITO CALA
E tudo passa a ser normal:
Um homem debatendo epilepsia,
a morte na delegacia,
o bem, o mal, a covardia…
Tudo passa a ser normal:
Morrer de susto
por ter visto o vulto humano,
homens de luto,
enquanto há culto e contrabando.
Tudo passa a ser normal:
Escorbuto na senzala, morte a bala,
enquanto, oculto, um grito cala,
enquanto eu curto a tropicália,
tudo passa a ser normal.
…Assassinato na avenida,
a multidão perdida, a solidão.
Padre pregando
que ser pobre é ter o céu,
defunto andando sem dormir
por não ter chão.
E tudo passa a ser padrão:
Morrer de fome
produzindo pro patrão,
ir pra favela
e ser servente de mansão.
Página 72
EXPLOSÕES DE DOR
Eu ligo o rádio e vejo o mundo
em explosões de dor se debatendo.
Eu vejo gente da janela
o mundo em sentinela vendo
desmentindo a paz… morrendo.
A guerra acontecendo
num jardim de flor minada
com crianças que desfilam cirandinha
entre aviões que bombardeiam os seus filhos
como quem destrói o nada.
Há uma Hiroshima em cada um de nós,
um Hitler nos mirando na TV,
um guardião do mal em cada esquina,
uma mina em cada passo e não se vê.
Há um caminhar sozinho, um Kamikaze
em cada um da multidão,
um sim em cada não em todo canto,
um avião que bombardeia mágoas
num navio que vai ao longe
neste mar de pranto.
A nossa guerra é fria
e em explosões de dor nos debatemos,
criando um Vietnã
em cada olhar que esbarra
em cada um que vaga
e não nos vemos.
Página 73
CANTO NOVO
A Etiópia
é o ópio do meu quintal,
o mal nordestino
é o destino do meu povo
e faz parte do carnaval.
Minha varanda anda repleta
de gente retirante
passando indigente
pelo instante da vida.
A dor do canto desses homens
dói no canto que eu canto
enquanto os donos dos seus danos
dormem dando graças
pela massa
que por deus de suas desgraças
ora.
Vem que é hora
de mudar a mágoa
em canto novo,
tornar da massa mole
um forte povo,
comer o pão,
secar a água desses olhos
e fazer jorrar lá no sertão.
Abrir os poros da mão
e lutar pelo chão mal dividido,
fazer abrigo pela prole
e provar que o pobre pode
ter o luxo do patrão
e ser um ser
longe do lixo
dessa escravidão.
Páginas 74 e 75
OUTROS INVISÍVEIS
E verás um dia o teu inimigo de frente.
Verás refletido em cada face sem dente
quem te relega em vida
à condição de morte.
E verás um dia quem te impede o pensamento,
verás as grotescas amarras
que te levam para o medo
e cerceiam teu intento.
Verás quem manipula a tua fé,
quem torna as religiões tão transmissíveis
que te impedem a luta em temor a Deus
e a outros invisíveis.
E verás um dia quem é Deus,
para que serve e a quem.
E verás quem és
e para que te querem ninguém.
…E descobrirás o deus que és
e sentirás a força que tens
desgastada em terra alheia
e quererás a tua.
E buscarás neste dia
a tua parte em toda parte.
E tomarás a parte pra teu filho.
E mudarás o mundo neste dia,
tomarás de alguns o que é de todos
e para todos o sol acordará
sem sombra ou dúvidas,
sem classes ou ignorâncias,
sem misérias ou vigilâncias…
E neste dia
a liberdade brilhará
maior que o medo que tens!
Páginas 76 e 77
CANIBAIS
Prostitutas e pederastas
atravessam as avenidas,
enquanto escondemos nossas mediocridades
disfarçando-nos de Deus.
Nossa santidade não é maior
que o orifício por onde defecamos.
Sordidamente sujos,
sorrimos quando desejamos matar,
beijamos de medo, matamos por amar
e amamos para não morrer.
Palavras fúteis vomitamos
na inutilidade das ideias.
Sentimentos úteis despejamos
em masturbações públicas,
histerias e tédios inúteis.
Canibais dos próprios sentimentos,
canibais dos sentimentos alheios
na tentativa infame
de alimentar medíocres carências
paranoicamente manipuláveis
no espelho em que nos vemos.
E não sentimos mais que uma pedra.
Uma pedra que chora e não pensa,
não passa e não morre.
…Mas uma pedra que existe!
Página 78
Scortecci Editora – 1995