OUTRO

 

“Só a poesia possui as coisas vivas.

O resto é necropsia.”

(Mário Quintana)

 

          Creio que Paulo Franco esteja morto. Explico: para renascer, é necessário primeiro morrer. Ao menos, foi o que disse um outro poeta em um outro tempo. E de um outro poeta também, é a voz que ecoa pelas páginas d’O Curto Verão das Estações. Pois bem, não é a primeira vez que morre Franco: Houve um primeiro poeta corajoso a namorar a força bruta, um segundo poeta vivendo na dualidade de cada olhar e face, um terceiro poeta morando no sótão de suas lembranças e medos e tantos outros poetas não menores, mas nesta obra, o poeta deste tempo, nos brinda com uma esperança oculta em sua própria desesperança, quando na densa conclusão que marca cada poesia, sugestiona a solução para a causa que trata, mesmo que inerente a qualquer ação.

          O velho Paulo, que sempre assistiu por obrigação a um tempo latente e voraz passando, agradece ao novo que pontua dessa vez o próprio tempo como se já tivesse passado. Este, liberta seus poetas antigos da angústia de ver o mínimo sucumbir aos anos, assimilando que o tempo sequer existe e que além do presente nada de fato há. Uma nova maneira de compreender o transcorrer da vida, onde tudo o que há é o agora, traz em essência textos curtos e objetivos, carregados com um peso, dessa vez concentrado, simplificado, para compreensão de quem recebe o murro, posto que  a mensagem só é concluída se pode ser entendida, mesmo que ainda mascarada nas poderosas metáforas de sempre. Em meio a criticidade direcionada a uma sociedade que cospe suas ideias e ideologias, compradas e vendidas, em uma velocidade ameaçadora e feroz nas redes, os poemas mais recentes também são velozes na maneira como moldam suas ideias e apresentam suas causas, haja visto, a vastidão da maior explosão do universo, exprimida em três valentes versos no Big Bang. Ali um poeta morre e outro renasce. Paulo Franco, este renascido, está incomodado com a falta de profundidade na maneira em que olhamos tudo o que deveria ser profundo, como se tivéssemos medo dessas profundezas ou como se simplesmente não enxergássemos a necessidade de conhecer o fundo de tudo o que existe. Nessa linha, Mares e Marés aponta para a liquidez e superficialidade de tudo o que se discute e de que se vê, em bandeiras levantadas que não simbolizam nada, mesmo que cultuem a ordem e o progresso. Sentimos essa chamada de atenção de maneira objetiva, numa espécie de simplicidade profunda, como se o poeta que vivesse no fundo, viesse à superfície para nos alertar. No entanto, apesar da simplicidade lógica que chama a atenção nesta obra, quando comparamos com obras passadas, engana-se quem acredita que pode encará-la a seco. Em certos momentos, encontramos uma espécie de pontualidade – na busca do aqui e do agora – como em Cabo de Guerra, mas por detrás, a discussão ideológica viril rasga a própria pontualidade e a arrasta para outra direção, puxando consigo a ideia não-efêmera, existencial, do que somos e do que fazemos, como tudo o que se busca em arte. Reforço essa observação citando um poema que parece contraditório à tudo o que disse aqui, Jerusalém: a noção da pequena dimensão do que somos e clareza da dimensão expandida do tempo posiciona um poeta fixo em uma vida flutuante. Esse texto, repito, parece contraditório, mas conclui revelando outrem que o habita em outro tempo.

          Há também aqui presente, uma maneira ainda mais lírica de demonstrar o desconforto pelo que conhecemos, contrastado com o natural medo pelo que desconhecemos. Em Essência (o poema), notamos com clareza esses pesos e medidas colocados na balança, como a velha consciência de que é estranho temer os mortos, quando vivemos diante de inúmeros e independentes vivos. O desconhecido, com o caminhar da vida, passa a ser uma necessidade, uma continuação, uma abertura, uma janela, um escape. O que conhecemos está fora do lugar. Ou seria a voz do poeta que estaria? É provável que seja e que o próprio tenha consciência disso. O poema Datilografia traz a síntese do que sinto no contato com esta obra, em suas próprias palavras: O poeta é outro.

          Este livro se abre e se fecha da mesma maneira, como se encerrasse um ciclo ou como se fosse de fato cíclico. Em Unção, o poeta exprime novamente a sua esperança sobre a própria desesperança, exprime a existência de um novo poeta dentro do próprio poeta e de uma nova vida dentro da própria morte. E o tempo quase para. Talvez para nós que vivemos junto deste Paulo Franco que aqui está, pouco do que foi dito aqui seja revelador. Mas para você que está há 100 anos à nossa frente no passar linear do tempo, tenho uma informação que pode ser surpreendente: creio que Paulo Franco esteja vivo. 

Vinícius Nunes Franco
Músico, Escritor e Arte-Finalista

Páginas 11, 12, 13 e 14 

 

 

A CRUZ

 

O poeta

de posse

da palavra fel

pode acender

as chamas

da palavra luz.

 

E tocando

na palavra céu

faz ressentir

os pregos

na palavra

cruz.

Página 15

 

 

A RUA PROIBIDA

 

Cansam-me esses muros imaginários

que detém o meu corpo,

porém não o meu pensamento

que traduz a minha alma

libertina e portadora de um coração libertário.

 

O silêncio ruidoso da rua proibida

desmascara o irmão que passa

alheio à dor do outro

que também não o percebe infame.

 

O meu quintal é um jardim

de flores que não colhi.

Nunca fiz de mim

o que deveria semear para me florir.

 

À deriva, o meu endereço é provisório,

como provisório sou

para cada olhar que passa

e cumprimenta o que pensa que vê

o que não sei se sou.

 

Semelhantes, nos escondemos de nós

em nós indesatáveis

para que o próprio esconderijo

não seja descoberto pela emoção

meticulosamente resguardada de si.

 

Cansa-me essa casa grande

de cômodos que não uso.

 

Meu coração é uma senzala

de açoites, sem escala, a tinir,

que me aplico durante as noites

em uma eternidade, que diminuta, cala,

ainda que eu não consiga dormir.

Páginas 16 e 17

 

 

ASAS AO VENTO

 

Há pedaços de sonhos doces

esparramados pelos cômodos.

No tanque,

peças mal ensaboadas.

No tempo,

a peça necessária

para o espetáculo

de cada instante.

 

Em cada momento

um sentimento único,

indigesto ou não.

 

Asas ao vento

levam-nos

a um tempo indizível.

 

A tradução da alma

está na palma da mão

em cada gesto

obsceno, de aceno de bem ou não.

 

Abraço, adeus,

um aperto no coração

que nem dói.

Página 18

 

 

BIG BANG

 

A vida é inevitável.

A morte,

uma necessidade.

Página 19

 

 

CABO DE GUERRA

 

A ideologia

pode ser do bem ou do mal.

 

O meu país é arrastado

ao esgoto do mundo

em nome do bem e do mal.

 

As certezas ou dúvidas que possuo,

nem sei se são

do bem ou do mal.

 

Mas as mortes

não são números.

 

Atrás dos índices

há dores.

 

Abaixem as faixas, as cores,

que os lutos precisam passar! 

Página 20                  

 

CASA DO AMANHÃ

 

Amanhã seremos outros.

Quem nos viu hoje

nunca mais

verá a mesma pessoa.

 

No amanhã

morarão outros eus

que não seremos mais.

 

No instante cabe

meramente

a casa do hoje.

 

Em um outro dia,

uma outra casa

distante no tempo,

estática,

talvez.

Porém, outra

a abrigar outros.

 

Mutamos com a constância

imperceptível de um jardim

com flores

que dia após dia

desabrocham e caem

para outras florirem sem fim

enfeitando no tempo

a casa das pessoas

do amanhã que passarão,

possivelmente,

sem observar o inconstante

jardim.

Páginas 21 e 22

 

 

COLAPSO

 

Em colapso

o coração

repulsa o medo

invisível.

 

A morte

ao longe

acena

para mais

algum desconhecido,

meramente um estranho alguém.

 

A vida do outro

é uma estátua

de sólido ódio

que acirra

a liberdade

que já não convém.

 

A cidade transeunte

para.

 

A desigualdade

agora escancarada

inunda

o mundo cão

do capital

que sangra.

Páginas 23 e 24

 

 

CORDEL

 

Não há um tempo exato

para as coisas.

 

Encruzilhadas nos acenam

para as decisões que adornam

o nosso livre arbítrio

que pode querer não ir

diante do chamado

de cada caminho.

 

Visões minadas,

múltiplas estradas,

torres de babel.

 

A felicidade

é uma ambição pobre

como uma estrofe nobre

em ritmo de cordel.

Página 25

  

 

DATILOGRAFIA

 

As teclas, apesar de amareladas,

as mesmas.

Os dedos e sonhos,

nem tanto.

O tempo é outro.

 

O poeta

pousa a sua idade

diante do teclado envelhecido

que de saudade

dói.

O poema não floresce.

O poeta é outro.

Página 26

 

 

DIGITAL

 

Olho para a ponta

dos meus dedos

e não me identifico

além das sagas que toquei.

 

Os olhares estranhos, entretanto,

reconhecem a minha identidade

nas entrelinhas do que tento disfarçar.

 

Apesar das máscaras obrigatórias,

sabem os meus números,

gostos, atitudes, sonhos

e deduzem os meus medos.

 

Eu, meramente,

espio o M na palma

da minha mão

que a apalpar

o meu antigo rosto

não me enxerga

nas linhas do tempo

que vivi.

 

Penso, então,

nas linhas das pipas

que meus dedos empinaram,

mas as minhas digitais

também não estavam na infância

desprovida de R.G.

ou fé que acalmasse

o mesmo sentimento

de inconstância.

Páginas 27 e 28

 

 

DIVÃS

 

Sexualidades diversas

ao que a face determina ao Face

contradizem-se no reflexo dos espelhos

que sombreiam almas vãs.

 

E das almas

sofreguidões em risos

que caricaturam guizos

que são dores tatuadas pelo corpo

que contêm o intraduzível

destes sentimentos que se confundem

entre o frenético deste festival de cores

que é um carnaval de dissabores afãs

meio aos desamores dos encantamentos

propiciados, quase sempre, pelos tormentos

de pretensos eternos relacionamentos

sentenciados aos divãs.

Página 29

 

 

DO NADA AO ALÉM

 

Aliciei-me ao meu quintal

como quem se alista

à cruz dos mártires.

 

Alguns pedaços decepados

dos meus sonhos encerrados

foram sendo perdurados

nas divisas que os meus muros

representam entre eu e o mundo.

 

Nos varais penduro o meu tempo

escovando manchas

nos revestimentos que me vestem

para ir às ruas

qual um fugitivo

temeroso do que é.

 

Sentenças e portões

impus às pulsações

que ao coração convêm. 

 

A vida

é um divisor de águas

entre o nada

e, quiçá, o além.

Página 30

 

 

DORES DO MUNDO

 

Arrasto as dores do mundo por dentro de mim,

embora não sejam minhas ou dos outros

que igualmente a arrastam em um latejar sem fim.

 

Não sou dono das mágoas, das feridas,

das contradições ou das ignorâncias,

nem das minhas e nem das dos outros,

mas me adentram suas sintonias

e contaminam meu coração perdulário

e me embrenham de sofreguidões

que esmorecem o meu cantar necessário.

 

Arrasto instintivamente uma sólida poesia

sobre algumas cicatrizes e culpas

destes crimes que assisto,

impávido sobre o salto alto

da opulência

de um lirismo ineficaz que contagia.

 

Imprudentes, alguns versos de tristeza

agasalham os olhares dos desprevenidos.

 

Outros, bem pontiagudos,

arranham os melindres

dos incautos,

bandeirismos de igualdades de papel

meio a urros e orações que desmantelam

os delírios

em nossa torre de babel.

Páginas 31 e 32

 

 

ESSÊNCIA

 

Há ruas nas quais nunca passei

(a maioria delas).

Poucos endereços conheço

e estes quase não os revisito

e se os revisitasse

ficaria ainda mais triste do que sou

por essência da não saudade.

 

As pessoas e lugares

que vejo pela primeira vez

causam-me a estranheza

da insegurança de nunca mais revê-los

(as pessoas e os lugares)

e então me sinto menor ainda

do que imagino que sou

muitas vezes sem saber.

 

As pessoas são estranhas

e tristes

e as que não são estranhas

são, pelo menos, tristes

por quererem aquilo tudo que não têm

e eu, que nada quero,

sou estranho por essência,

inclusive a mim

e triste, principalmente, aos outros

que apenas observam o vulto

do que pensam que veem. 

Páginas 33 e 34

 

 

EPITÁFIO

                                                          A Pedro Lino Franco

A tarde linda

contrasta-se com a nebulosidade

das emoções.

 

Límpido o sol sorri

do olhar dos homens

que bombardeiam as ilusões

dos poetas e dos mártires.

 

Nas lápides os mármores brilham

epitáfios

à luz das lágrimas que oram

por aquilo que passou.

 

Anárquicas ou sonhadorescas

algumas revoluções desenharam

as décadas de sobrevivência e busca

a partir de 17 do século anterior.

 

Alguém na estrada dos instantes,

há um século, nascia

para parir a minha ancestralidade

na parede invisível do tempo

sem hereditariedade alguma.

 

A tarde tímida

brinca com a saudade

entregando-se à noite

que adormecerá no sempre

desse hoje que amanhã já não existirá.

Páginas 35 e 36 

 

 

FAQUIR

 

Arrasto a noite

qual faquir

que nos segundos

se tortura insone.

 

Ouço a escuridão que murmura

no coração dos homens

que se perdem

na procura da ilusão

que os contém.

 

Pirilampos perambulam

pelos sonhos

que dormem

em meus esconderijos.

 

Aguardo a luz

enquanto vago pelos cômodos

que em penumbra

adormecem passados de ancestrais

que não serão esquecidos.

 

Há um vazio

a preencher cada pedaço de silêncio

aconchegado nos ruídos pontiagudos

dos ponteiros que embalam a melodia

desta noite pandêmica

que alguns ratos não percebem.

 

No esgoto das almas

algumas ideologias antigas

viralizam sem antídoto

exterminando os sonhos,

que globalizados,

banalizam o instinto de sobrevivência

e orquestram suicídios

em nome de alguns credos

que os credenciados ao céu eterno

geram bestialmente

meio às goiabeiras deste inferno.

Páginas 37 e 38

 

 

FERA

 

A mão enrijecida pelo tempo

tenta a intenção do texto

na tecla envelhecida

por ideais que não dormem.

 

A gente acaba em esquecimentos

na mecânica das coisas

que passam aligeiradas pelo digital

das nossas emoções que não podem ser descritas

por serem irracionais,

apesar de algumas boas intenções.

 

A máquina humana se deteriora flácida.

As invenções, meramente, se sobrepõem

umas às outras e aos homens

que partem intemporais

vitimados por isso ou por aquilo.

 

A velha Olivetti é laica, leiga, lenta.

 

O Face vocifera a fera solta

no ar da decomposição moral do dia seguinte

com todo o requinte dos que ignoram o passado

e apontam para o vazio de um futuro

que nos deteriora o tempo todo

meramente por acinte.

 

Matamos e morremos porque digitamos sem pensar.

A velocidade é uma ordem.

A datilografia

impunha a competência da palavra pensada.

 

Mas pensar hoje cansa.

Então o impulso imediato impera

e a fera maquinalmente ruge.

 

Enrijecidos corações que não entendem

que os impérios passam,

os poderes perpétuos trocam de mão

indiferentes às governabilidades estúpidas

e necessárias.

 

Há muito optei pelo sol das almas.

Há muito mais a escuridão

norteia a brutalidade humana

em nome da supremacia de poucos

sobre a taxa de mortalidade de muitos.

 

E o tempo? E as máquinas? Os impérios?

Do tipo às esferas. Das esferas ao digital.

Do digital ao eterno desse nada intermitente.

 

O coração enrijecido pelo tempo

traça a intenção do poema poente

na nuvem de infinito

que a fera em nós

na poesia captura

nessa dor latente.

Páginas 39, 40 e 41

 

 

FESTA

 

Na festa do silêncio

as palavras se calam

reprimidas

por não terem o que dizer

a cada sentimento omitido

por uma ordem que não se vê.

 

A fala falha gaga diante do medo

e o silêncio onipresente

impera onipotente

sobre o que nem pode mesmo

mais ser dito.

 

Escravizados 

os sonhos que virão navegam

sem cor ou esperança

em uma dança sem som,

fora de tom

a deglutir evangelismos

em cultos sobre o nada.

 

Na vastidão do silêncio

a nau dos degredados gritos

pranteia os olhares das desesperanças,

das sofreguidões que infestam os conflitos

por não ver a realidade em festa

desdenhando a comunhão dos mitos.

Páginas 42 e 43

 

 

FLOR DA AURORA

 

Afago o meu olhar, pétala distante,

com a frivolidade da insensatez

dos loucos sentimentos

que me recompõem em um jardim sem cor.

 

Vasculho em meus boçais esconderijos

as verdades que perdi

por escondê-las em caráter permanente

no escorrer das estações e cheiros.

 

No horizonte

alguma coisa dos dias vividos

que parece não fazer sentido

no real da abstração

que é o perfumar da aurora.

 

Alguma coisa inodora,

estanque,

uma flor fora de hora

que desabrocha

apesar da tempestade

constante

a alagar a semeadura

que não vai vingar.

 

O tempo. Oh! O tempo!

Este invisível destruidor de sonhos

que não ressuscitam a esperança

sobre o que se foi

para nunca mais

como uma flor sem broto,

arrancada da raiz

a espiar as suas últimas pétalas

que caem.

Páginas 44 e 45

 

 

HIPÉRBOLE

 

A distância

entre um segundo e outro

é uma eternidade

diante da pequenez daqueles dias

que não terminam nunca.

 

Há um mundo em mim

a cada verso que carrega

a dor dos semelhantes

que pranteiam esse mar pandêmico

de dissabores e procuras vãs.

 

Há no divã um inferno

de alucinações e ansiedade

que passeia como um vírus

pelas ruas proibidas

sob um céu, meio a arranha-céus

desta ou de qualquer outra cidade.

Página 46

 

 

INSÔNIA DOS DIAS

 

A noite sobre mim

sombreia o dia que disfarço

desfazendo-me das réstias

do indizível de cada estação.

 

Há um cansaço latente no tempo,

na administração das coisas

que estão eternamente pendentes.

 

Os seres amoitam

suas dores e dependências

aonde as coisas estão arrumadas

em aparente desorganização

no estar.

 

As janelas

nem sempre fotografam

as ruas como elas são.

 

Nas cidades, falta espaço

para a parca luz das almas

que vagueiam em desilusão.

 

Os dias nem sempre

nas frestas e buracos de fechaduras

amanhecem azuis

quando as portas

estão trancadas para a emoção.

 

A noite acaba virando o porvir

da razão da insônia dos dias

que já amanhecem repletos de escuridão

quando o coração está cansado de sentir.

Páginas 47 e 48

 

 

JAULA

 

Havia um anjo

que sobrevoava a gaiola

da minha emoção menina

porque nela residia um encanto

acarinhando o meu dia a dia

que amorteceu na lembrança ruidosa

do anoitecer

meio a canto de ave de rapina.

 

A minha alma engaiolada pulsa

um coração sobrevivente

entre grades instintivas que omito.

 

Um bicho encurralado

pela ordem de silêncio

que algum supremo determina

para enjaular

a ansiedade do grito.

Página 49         

 

 

JERUSALÉM

 

Eu vivo em uma rua pequena

de um mundo bem grande

riscado por uma vastidão de ruas

grandes e pequenas.

 

Só não sou pequeno demais

porque em qualquer rua

deste mundo de descaminhos

eu seria outro jamais.

 

Sou absolutamente diferente,

embora não independente

de todos os outros eus

que vivem em todas as outras ruas

que não são a minha.

 

Na minha rua não tem estátua.

Há ruas com estátuas.

Na minha rua não tem

um monte de coisas

que outras ruas têm.

 

Mas na minha rua há a minha casa,

a única casa do mundo grande

que abriga o único eu que possuo.

 

Às vezes, acho

que no mundo grande

há uma única grande rua.

Só o que confunde são as esquinas

e os oceanos e os desertos…

 

Então, eu chamo a minha rua

de Jerusalém,

sabedor de que nada é de ninguém

e não é preciso um caminhar a muito além,

pois até a minha casa,

em outro tempo

hospedará um outro alguém.

Páginas 50 e 51

 

 

JUÍZO FINAL

 

Escondidos do invisível,

os homens em suas casas

mumificam os instantes

deste agora que é lento

e dói.

 

A lua de abril

desabrocha ainda

neste céu de escuridão

meio a noites que dormem

enquanto demoram a passar.

 

O dia seguinte

é uma incógnita.

Economia ou vida?

 

Debates ao vivo

fazem de conta

que os mortos voltarão

ou que a vida do outro

não vale a pena ser guardada.

 

Os sonhos se entrelaçam

à ambição adoecida.

Há dores no invisível distante

que pouco a pouco se aproxima

transformando-se em faces

que se decompõem.

 

As máscaras escondem os sorrisos,

mas aliviam os prantos

do concreto das dores

dos que perdem entes antes da hora,

qual um juízo final

inesperado

e irreversível.

Páginas 52 e 53

 

 

LABIRINTO

 

Vislumbro

um mundo diferente.

 

Resisto à realidade

como quem pressente fezes

no vírus do olhar alheio

contaminado por aquilo que vê.

 

A verdade

na verdade

inexiste.

Mas ainda bem!

 

A fé ordena

a bestialidade

da desordem dos fatos

que à ordem do sistema

convém.

 

De fato,

não me encontro

um animal dócil,

acorrentado entre feras,

a reagir.

 

À margem disto tudo,

a humanidade é sempre um porvir,

um aglomerado

de engodos e enganos,

verdades inventadas

para erguer muros que irão ruir

e cidades

que serão bombardeadas,

em breve,

pelo labirinto

deste mal ideológico

em nós, sem lados,

a nos sucumbir.

Páginas 54 e 55

 

 

LEMBRANÇA

 

Das encruzilhadas

pelas quais

cruzei

arrasto

na lembrança

apenas as

interrogações.

Página 56

 

 

LOCKDOWN

 

As janelas espiam

vorazes

os vírus que trafegam

nas pessoas

pela rua proibida.

 

A ganância acirra o ódio

nas praças

e igrejas embandeiradas

enquanto os olhares

coagulam

diante dos índices

incrédulos.

 

Cabisbaixos sentimentos

menosprezam

a insensatez.

 

Confinados

os corações planejam fugas

para algum campo distante.

 

A liberdade dos loucos

vira a ordem do dia

enquanto o sistema quebra

a observar a agonia

do capital sem valor moral

para abrir as portas

e as janelas trancadas,

finalmente,

sorrirem escancaradas ao sol

desse nosso instintivo lockdown.

Páginas 57 e 58

 

 

LUA NA JANELA

 

Uma moldura embriagante

entre o quarto, minha estante e o infinito,

faz das sombras nessa noite

o outro lado do horizonte do meu grito.

 

A janela, neste instante,

inebria-se de luz na escuridão

enquanto o meu olhar fulgura na ilusão

estando em mim a divagar distante.

 

Figuras de linguagens se esparramam

sobre a minha escrivaninha

enquanto um poema

refletido pela luz da noite

em meu parco coração se aninha.

 

E na parede oposta à luz da lua

é desenhada em sombras,

que se movem lentamente, a janela

e o meu olhar vai recriando uma vidraça de infinito

meio a sonhos que transformam o meu grito

em um poema de aquarela.

Página 59                  

 

 

MACHADO

 

Escuto ainda

os pingos das chuvas

da minha infância.

 

O pai, que assinava com as pontas dos dedos,

nesses dias de chuva, não trabalhava

e a vida de dificuldades,

assim, parecia mais rica.

 

Ouço ainda os ruídos do machado

das desesperanças que eu não via,

mas adorava, sem verbalizar,

o companheirismo

de uma ignorância carinhosa que nos preenchia

com histórias de plumas e assombrações.

 

A chuva leve e persistente

era um adorno

para o peso da sobrevivência.

 

A casa, rústica e pequeníssima,

virava uma imensidão lúdica

na mansarda de sonhos

que a infância faz imaginar.

 

A mãe nem sempre via assim.

 

Fogão de lenha rachada a machado

queima a alma para quem,

casmurra, entendia Capitu.

 

Meu pai era um Bento

sem conhecimento.

 

Bem depois eu entendi

a minha infância dúbia,

mas já era tarde,

embora a chuva latente

insista em alguns meus redescobrimentos

que nem são machadianos,

mas casmurram os meus sonhos,

pois que a alma quente

na lembrança ainda sente.

Páginas 60 e 61                            

 

 

MAIS-VALIA

 

Um lugar vago

no vagão do trem.

 

Um homem passageiro

por toda uma vida,

certo dia, inesperadamente,

não vem.

 

No mundo nada mudou.

A fábrica não parou,

e nem, muito menos,

o trem.

Página 62

 

 

MANANCIAL DA ALMA

 

O meu olhar é um turista

que se alimenta da tristeza dos homens

que se procuram em ruas estranhas

para descobrir semelhantes diferentes

dos estranhos da convivência

que teclam a conivência do estar

só.

 

O dia pode ser o inesperado

para quem passeia pelo desconhecido da ilusão.

O inusitado de cada olhar único

faz do manancial da alma um colírio

para acalmar o olhar que acolhe o coração.

 

Ah! O escândalo que é o tempo

escancarado em nós

que sabemos mais do que suportamos

sobre o inevitável correr das horas e seu fim!

 

Enquanto isso,

as ruas desconhecidas

remoçam as procuras

dos vazios que escondemos

dos outros que passeiam em nós.

 

Ah! Até podemos temer o óbvio,

mas o nosso instinto labiríntico

pede pelo desconhecido da ida

que clama logo pelo sentido da volta

ao nosso seguro íntimo mímico

que é o turismo da vida.

Páginas 63 e 64

 

 

MANIFESTO DE DOR

 

Há um ópio

a anestesiar algumas manchas de sangue

que mancham com verde e amarelo

a vermelhidão das consciências falsas

que buzinam panelas reivindicando o que desconhecem.

 

Crises que se mesclam

aos gritos represados de gols

meio à massa enfurecida

que clama por metralhadoras

às vésperas das urnas.

 

Selecionados, os que comem fazem manifestos

contra os que pedem pelo fim da fome

que a opulência do capital fomenta.

 

Homens que exterminam homens

enquanto grunhem coreografias

pelas avenidas ainda democráticas

entre uivos por intervenção.

 

Oh! Democracia

que clama

pela liberdade

que a destrói!

 

Oh! Liberdade

que extermina a verdade

deturpando a realidade

para banir os direitos

daquele que a constrói!

Páginas 65 e 66

 

 

MUNDO CÃO

 

No meio da noite

a garoa lacrimeja sobre os paralelepípedos

que observam a correria dos lixeiros

que recolhem as sujeiras

deste mundo cão.

 

Alguns homens de classe

desclassificam outros homens

para submetê-los à faxina

das ruas que adornam as suas sacadas

infames.

 

O lixo vira o alimento de tantos.

 

Na minha lixeira

os restos desta parca opulência

acenam para os andarilhos

que clamam por sobras.

 

O meu olhar

diante desta dor que contagia

passeia

pela rua da garoa dos garis

a perguntar a razão de tanta correria

nesta noite

impiedosamente

fria.

Páginas 67 e 68

 

 

NAS ESQUINAS DO INSTINTO

 

A vida, lúdica e hipotética

a gente decide de ouvido

nas sintonias das indecisões

dos múltiplos acordes de tempo

que tendem a nos acordar

em cada dedilhar de momento

nas esquinas do instinto

que nos musicaliza

em uma orquestra

de instantes que ruídam

o som das nossas almas,

muitas vezes, afônicas

e vasculham

as composições dos gritos

do infinito em nós

que se desatam em interlúdios

para instigar

as silenciosas sinfonias de emoções

nos ritmos de outros corações. 

Página 69      

 

NECROSE

 

Ainda vivo

(e) morro

por sua

ausência

(presente em mim).

Página 70

 

 

O ANDARILHO

 

Como inocente ave

a ciscar o chão

sob a espreita

de um olhar felino,

trilho os dias

absorto

como um velho

andarilho do destino

que carrega a singela

displicência dos sonhares

nos olhares de um menino.

Página 71

 

 

O ATEU

 

O poeta ateu

tateia o escuro

das crenças

necessárias

à caça

da composição

de nova estrofe

para um poema

inócuo

de fé.

 

A arte alimenta

o espírito das coisas

e torna desnecessária

a concretude dos deuses

inventados para aliviarem

a abstração do medo

devastador de razões.

Página 72

 

 

O DESESPERO DO MEDO

 

O coração ainda se move.

 

Sob as máscaras

o medo

entre a hóstia e o ópio.

 

Valores e volúpias

oscilam nas bolsas

que embalam a ambição

ou a simples sobrevivência.

 

Governos são enfrentados

com casamatas

que agora são casas.

 

A rua proibida

inibe a concentração

das rendas.

 

Os andarilhos

continuam esquecidos

em suas calçadas invisíveis

diante de um sistema que se via inviolável.

 

O medo frágil

a comandar poderes sólidos.

 

Algumas bestas

biroliram ódio nas ruas abrasadas

que deveriam estar desertas.

 

Os enfrentadores do medo

só se desesperam quando há falta de ar.

Mas o sistema ainda pulsa.

O coração ainda se move.

O planeta respira dor.

Páginas 73 e 74

 

 

O GATO

 

O meu felino olhar fere porque é fera,

mas assim como quem observa as quimeras

ajeita o meu coração de pedra que se parelelepípeda

em ruas repisadas pelos ancestrais do hoje.

 

Uma rua nova, uma esquina,

uma calçada velha,

um lampião que não existe mais.

 

A vida é apenas

uma espera de coisas e sonhos

que independem das noites ou dos dias.

 

Obcecado por ser feliz, ao acaso,

reinvento-me na infelicidade

destes cotidianos

que me alimentam

de metáforas entre as rotinas

ou o oposto disso.

 

E para me manter poeta ou cidadão

prefiro não decifrar

algumas incógnitas interiores,

apenas para me conter,

entretido no que pulsa

o meu etéreo coração

que, como um gato,

pula para trás

quando temeroso

frente as garras de qualquer paixão.

 

Com unhas e dentes

ronrono pela rua que me corrói.

Rápido de impulsos

apaixono-me pelo abstrato dos riscos,

equilibrista de uma decomposição

que dói.

 

E felino menor que sou,

invejo os pássaros

não porque voem,

mas por não temerem a queda

confiantes

nas asas que possuem.

Páginas 75 e 76

 

 

O LONGO E ESCURO INVERNO DAS ESTAÇÕES

 

Um homem triste é apenas um homem triste.

Um mundo triste produz inúmeros homens tristes.

Às vezes, o inverno dos nossos corações

invade o verão dos sonhos e inventa

ventos ocultos com velocidades inimagináveis.

 

A vida, assintomática,

nos impõe porões, mares ou marés inesperadas

e à deriva nem sempre percebemos

o peso das feridas que arrastamos,

grãos que somos na areia infinita do tempo.

 

Enquanto isso, no ambulatório das almas

sobrevivem à dor

os que medicam a sobrevivência alheia,

muitas vezes, virando óbitos estatísticos

que a poesia não vai metaforizar.

 

Índices, gráficos e ambições

podem nos condicionar

à liberdade ainda prematura

dentro desta cela que virou

o confortável esconderijo

daqueles que se habituaram à espera.

 

A matemática pandêmica da ambição

põe em xeque as bolsas

para que as linhas de produção

exterminem os nossos valores

em troca do nada

para não vermos que somos

os verdadeiros culpados

de sonharmos com a calma opulência

de um animal voraz

enquanto geramos a fome do irmão

que vitimado não tem paz.

 

Niilismos, fascismos e socialismos

se debatem

em nome de um próspero capital

que não sobrevive

sem os suicidas que produzem

em larga escala

a liberdade de consumo dos tolos.

 

O longo e escuro inverno nórdico

dos nossos corações

pode não representar a imunidade

das nossas almas afoitas

por uma rua de ilusões

ou por um abismo inesperado

qualquer,

pleno e repleto de aflições.

Páginas 77 e 78

 

 

O OLIMPO

 

Tenho um poema em carne viva

pendurado no varal da alma

a secar ao sol do tempo.

 

Alguns ventos

e as tempestades

o sacodem límpido

na varanda estática.

 

Libidinosos temas o transcendem

da eternidade ao nada

ou o oposto disto

como se ele fosse o Olimpo.

 

Às vezes, acho

alguns pedaços de versos

que são pedras,

às vezes sangue,

riso, dor.

 

Mas o poema em carne viva

não sai de sua transcendência

porque o varal é denso

e preso à realidade sucumbe

feito inocente réu,

não deixa o poeta

se alimentar do irreal

para versar as iras

e não chegar no céu.

Páginas 79 e 80

 

 

O PRISIONEIRO

 

Detido

em meu desencanto,

eu não entendo nada.

 

…Um prisioneiro

político

dos encantos da ideologia

de um conto de fada.

Página 81

 

 

O VASO

 

Não tenho jardins.

A sobrevivência urbana

me proporcionou, meramente, vasos,

mas minha alma seca

é dependente dos jardins que não possuo.

 

A independência das flores

nos vasos

é irreal.

 

Lá dentro de mim

prefiro as chuvas, o sol,

a estrada barrenta,

assim como as flores.

 

O asfalto ruidoso

deprime o meu silêncio

e eu me sinto um broto de vaso

a aguardar a poda que não vem.

 

Meu coração, esse deserto sem cor,

sem fim,

não aceita ser regado

na submissão desse quintal

que mata a deprimir

o não florir da emoção

que ainda sonha ser jardim

por não poder

ser matagal.

Páginas 82 e 83

 

 

OS MARES E AS MARÉS

 

Os corações se assombram

de silêncios que sussurram

fake News que contagiam uma onda de caos.

 

A ignorância calma dos incautos

cultua mitos em memes

que esparramam medos invisíveis

entre hinos e bandeiras que passeiam

diante da plateia de moradores de rua.

 

Nau à deriva,

a pátria cede seus valores

a exploradores determinantes e brutais.

 

Quase tudo em nome de um deus

inventado, neoliberal e maldoso.

 

Somos vítimas

como peixes sabotados por esgoto,

petróleo que vaza com cheiro de crime,

altares e palanques com vermes que mentem

aos que urram que a terra é plana.

 

Os mares esperam pelas marés

que devolvem os dejetos dos homens

para a praia que os mesmos homens

iriam descansar seus corações

que transbordam assombros que sussurram

que a morte vai banhar o nosso caos.

Páginas 84 e 85

 

 

PÃO

 

A mão

que adeus acena

amena em ida

pode ser a mão

que mata,

apunhala

para deter

o outro ser em lida.

 

O pão

que sobra

em mesa farta

pode ser

o pão que falta

em outra mesa

para findar a fome

e manter a vida.

Página 86

 

 

PARALELOS

 

Piso o parco chão

sem direção.

Ruas estreitadas

pelo tempo de espera me levam

aos abismos do meu coração.

 

Uma vida de encruzilhadas

com semáforos

de sim

ou de não.

 

Algumas vezes

nem ir e nem ficar.

Em outras, partir

já querendo voltar.

 

Paralelos de mim

em cada estilhaço de pedra

tentam se encontrar

neste trajeto sem fim.

 

O meu olhar

é um reduto de poemas

que se escondem do papel

que quer detê-los

como flores presas no jardim

para expô-los ao olhar de todos

como um pranto colorido

desenhado a nanquim.

Páginas 87 e 88

 

 

PAREAR DOS SILÊNCIOS

 

Nada a parear na ausência de dicção

dos nossos corações instintivos

que marcham cabisbaixos

sem saber para onde.

 

A vida é uma ordem de prisão

sem habeas corpus.

Por vezes,

um aglomerado de indecisões

que geram decisões eternas.

 

Caminho sem retorno,

verso sem rima,

brancas nuvens de felicidades inventadas

no nebuloso céu de tempestades iminentes

como o risco no jardim de quem semeia mina.

 

A vida é um calar

que intimida grunhidos

nas pessoas que não gritam,

nos aflitos que pareiam silêncios

para que a comunicação não exista.

 

Viver é uma interface

que não facilita o parear intransitivo em nós

dos sentimentos que vivemos em cada momento,

pois que o instante seguinte sempre vem

e pode ser o esquecimento destes mesmos sentimentos

para a sobrevivência de uma rotina

que a ninguém convém.

Páginas 89 e 90

 

 

PINGO DE RIO

 

Espero o tempo passar

como o rio que vai no leito tortuoso, lento

em desfiladeiro desaguar.

 

Sou um rio e temo o oceano

(mais que a cachoeira)

que me espera

já que temo o tempo qual quimera,

pois bem sei que passa o momento

ao vento, assim como também a era.

 

Sou um pingo do rio que vai embora,

sou um outro toda hora.

 

E quem me vê por fora a cada instante

não percebe que nunca me viu,

porque sou a água em corredeira

que jamais permite que se veja duas vezes

a imagem de um mesmo rio.

Página 91

 

 

PLENITUDE

 

Uso, no poema, a palavra esperança

meramente para tê-la

nas coisas,

nos homens,

nos dias.

 

Bem como

quando uso a palavra pedra

tento edificar

aquilo tudo

que não é palpável.

 

Às vezes,

a esperança é uma pedra.

Às vezes, um caminho.

Às vezes,

é apenas esperança mesmo

em toda a sua

plenitude.

Página 92

 

 

PONTE

 

Fiz uma ponte

entre o que sou e o mundo.

 

No meio dela,

observo o rio das coisas,

à margem do tempo,

qual ondas que escorrem folhas

que caem ao vento a cada segundo

enquanto gira o mundo.

 

No rio, o reflexo de uma lua nova

sobre a minha cabeça velha.

 

Era a mesma lua da minha infância.

 

Eu, outro.

 

Um lunático vitimado

pelo reflexo do tempo

que girou

indiferente à ponte,

ao mundo,

a mim

que outro sou,

como um rio,

é outro a cada segundo.

Páginas 93 e 94

 

 

PRECIPÍCIO

 

Um piano de cauda

que perdeu alguns acordes

na melodia do tempo, me sinto.

 

Há ainda canções e versos,

mas que a inspiração

não dedilha.

 

Uma ilha que ficou sem mar.

Um mar sem universo.

Um verso sem poema

qual um barco à deriva

na correnteza que antecede

a cachoeira

de um belo e ruidoso precipício.

Página 95

 

 

REDE

 

É sempre melhor

a gente não se arrepender

do hoje.

 

À noite, o silêncio

necessário

da escuridão

emite ruídos

sobre palavras

não pronunciadas.

 

O hoje não é definitivo,

porém

a eternidade

pode estar contida no instante

em uma frase maldita

e aí será irreversível

a palavra dita.

 

O silêncio é uma ode,

por vezes, uma ordem,

já que o sentimento

consentido pela boca

contamina de mal

a nossa rede

de aparência ilusoriamente

virtual.

Páginas 96 e 97

 

 

REPRISE

 

O silêncio

aliciador de um medo estúpido

remoça a ignorância

dos ímpios.

 

Gritar não basta mais.

 

A rua profana

é um desfiladeiro

de limo moral.

 

Pedras

pranteiam

pela escuridão

dos que divulgam

uma terra plana.

 

O riso, hoje,

é um antídoto

para um tipo de dor

que não se vê,

embora reprisada

o tempo todo

em horário nobre

para os olhares pobres

que definham

prisioneiros

do extermínio

na tv.

Páginas 98 e 99

 

 

TERRA PLANA

 

Fecho as frestas

da minha casa

para caso algum olhar matreiro

tente adentrar.

 

Meu coração, na janela,

é uma quarentena de dor,

um vírus em mim

que pulsa o que não posso conter

diante da estupidez de meliantes da fé.

 

Alguns orquestram

que a terra pare

para conter o invisível,

mas a ambição

maestra que o lucro resista

ainda que o semelhante desapareça

bem distante das mansardas

que se imaginam inatingíveis

em uma terra plana.

 

Volátil, meu olhar cansado

gira o mundo epidêmico

de verdades irreversíveis

que são negadas

para regar a estupidez determinante.

Páginas 100 e 101

 

 

TIRANIA

 

A tirania

passeia pelas ruas

em traje de gala

sob pele de cordeiro em pose.

 

Em muitos,

por detrás das meninas

dos olhares,

a tirania é anciã.

 

A tirania testa a liberdade

que não se quer

porque se tem

e atesta a insanidade

dos que querem

grade ao outro

ainda que cientes

de que a eles

a detenção não convém.

Página 102

 

 

TORRE DE BABEL

 

Na multidão,

a solidão deprime

o descompasso dos sentimentos

que impõem silêncios sórdidos.

 

As dores similares

nos semelhantes

causam estranhezas

na linguagem que deveria soar una.

 

A distância

entre as razões

gera intransponíveis lacunas.

 

As fraquezas que criam deuses

fornicam o inferno mais cruel.

 

Cabe no silêncio a doutrina

do exercício de ouvir

os gritos que no coração

já não se pode mais conter

ao se ver ao longe o céu.

 

Na multidão

as máscaras escondem

risos e prantos que passeiam ao léu.

Olhares executores

decretam outros silêncios

que alicerçam

essa torre de Babel.

Páginas 103 e 104

 

 

UNÇÃO

 

No poeta

em pandemia

clama

por um verso

a poesia.

 

Por entre prantos

cria o poeta encantos

e confiante

olha

através da escuridão

vendo a unção

que é o raiar

de um novo dia.

Página 105

 

 

 

O SER, O ESTAR E O TEMPO DO POETA

Por Reinaldo Melo

Só a poesia não está contaminada,

só a poesia está fora do negócio.”

(Roberto Bolaño, in 2666)

 

     Há momentos em que as civilizações e seus indivíduos comuns deparam-se com impasses que os levam a questionamentos que, até então, lhes eram inimagináveis. No entanto, para um tipo de indivíduo, todos os momentos de todas civilizações e de todos os seres humanos são providos de impasses e de questionamentos constantes: eis a condição do poeta.

        O Curto Verão das Estações, de Paulo Franco, é uma obra que nos remete não apenas às agruras do presente, mas ao abismo entre o real e os anseios dos humanos e, principalmente, ao intervalo entre o mundo a ser absorvido em seu âmago e à linguagem em sua obsessão de traduzir esta essência.

        Mas como procede-se o movimento da palavra ressignificadora nos meandros do ato de poetizar?  Onde se aloca o ser do poeta nesse jogo da palavra deslocada da referência que ela deveria significar? Quando o tempo do poeta dialoga com o tempo presente dos homens frente a este deslocamento espaço-tempo-verbal?

        Consciente de que atribui a si uma tarefa longe de ser plenamente lograda, Paulo Franco já nos alerta, em seu poema de abertura, A Cruz, de que a palavra poética é uma via-crúcis ambígua: maldição e salvação são elementos discrepantes. Porém, no jogo sonoro-rítmico fel / luz, céu / cruz nos é revelado o caráter uníssono das aparentes contradições entre esses termos. Eis aqui, já, a poesia que se sabe consciente de que as relações de sentido, mesmo que opostos, se equivalem em sua construção, e cabe ao leitor aceitar a jornada oferecida pelo poeta ou, então, manter-se em seu mundo maniqueísta e pseudocômodo.

        O mesmo movimento do seu poetar, no que se refere à palavra poética como detentora de um saber para além do olhar comum, vemos em Dores do Mundo, em que a palavra torna-se efetiva a partir de sua própria natureza dialética: “Arrasto instintivamente uma sólida poesia / […] de um lirismo ineficaz que contagia” são versos que exigem do leitor a atenção à cinesia da palavra. Ciente de que ao mesmo tempo é instintiva e ineficaz, a poesia, mesmo diante da condição de um olhar opulente, se demonstra sólida e contagiante. Logo, para renomear o mundo, a poesia deve primeiramente voltar-se à sua própria nomeação.

        Em O Ateu, encerra-se de maneira magistral o ciclo de reestabelecimento do que a poesia foi, é e sempre será: “A arte alimenta / o espírito das coisas / e torna desnecessária / a concretude dos deuses”. Conhecedor de que a linguagem verbal nascera poética, porém, ao longo das eras, perdeu sua magia frente à significação do mundo, Paulo Franco faz de sua palavra um procedimento a resgatar o mítico abandonado na relação significante/significado, mesmo que em versos posteriores, como os d’O Olimpo, pontuando a relação de sua lírica moderna com a clássica, volte a fazer a poesia duvidar de sua própria elevação: “Mas o poema em carne viva / não sai de sua transcendência”.

        Ainda assim, a lírica moderna aborda, desde a crise do Sujeito, a imprecisão das alegorias sobre a metafísica: se transcender o espaço é tarefa árdua para o poeta, resta-lhe elucidar-nos de que o eu-lírico moderno deve se situar na gestação poética, entremeio do que se é e da realidade em que se encontra, como vemos nos versos de abertura de Ponte: “Fiz uma ponte / entre o que sou e o mundo.” A partir daí, Paulo Franco institui uma simbiótica jornada do mundo para o eu, do eu para a poesia e da poesia para o mundo.

        Há, pois, uma fusão, um ser estando e um estar sendo, condição da qual o eu-lírico sabe-se deslocado, como inferem os versos de Paralelos: “Algumas vezes / nem ir nem ficar. / Em outras, partir / já querendo voltar”. O ser/estar do poeta é o espaço para que, em sua formulação, a poesia saia do estado de transcendência em si, já que, nesse mesmo poema, o eu-lírico confessa que o olhar derivado de seu deslocamento “é um reduto de poemas” ao mesmo tempo que alude à sua condição transitória entre o mundo poético e o mundo real, como se constata n’A Rua Proibida: “À deriva, meu endereço é provisório / como provisório sou”, e em Manancial das Almas: “O meu olhar é um turista / que se alimenta da tristeza dos homens”.

        Todavia, é no tópos do memorialismo que Paulo Franco cria os poemas em que o deslocamento do eu chega a se desvanecer: “A casa, rústica e pequeníssima, / virava uma imensidão lúdica / na mansarda de sonhos / que a infância faz imaginar”, in Machado. Neste mesmo poema, o eu-lírico une o trabalho braçal do pai com a erudição da mãe, como elementos a harmonizarem a pureza infantil, esta agora desfeita na casmurrice dos “[…] redescobrimentos / que nem são machadianos”.

        Em Epitáfio, lúcido do acaso da predeterminação das heranças que carregaria, o poeta edifica a analogia temporal entre o nascimento de seu progenitor com a tentativa de indivíduos em materializar as utopias, que lhe são tão caras nas obras anteriores: “Alguém na estrada dos instantes / há um século, nascia / para parir a minha ancestralidade / na parede invisível do tempo / sem hereditariedade alguma”. É como se a memória fosse o lugar definitivo para que poeta e poesia se imbricassem num espelho cujos reflexos são a quase totalidade da compreensão do seu eu para com a sua poesia e da poesia para com o seu eu, havendo, diante de suas naturezas abstratas, a resignação mútua entre estas duas substâncias.

        E por mais que a poesia possua a percepção de sua incapacidade de nomear o real, é nos versos sobre este real que se apresentam todos os indivíduos como detentores de todas as pandemias de todos os tempos.

        No poema Faquir, há o reforço de que a poesia combate a banalização do mundo provocada pelas ideologias que esvaziam o sentido do ser: “Ouço a escuridão que murmura / no coração dos homens / que se perdem / na procura da ilusão / que os contém”. E se os versos “No esgoto das almas / algumas ideologias antigas / viralizam sem antídoto” pontuam que há o vírus de ilusões sem cura a obscurecer as consciências, o eu-lírico envereda-se pelas réstias de luz, “Pirilampos perambulam”, que estes mesmos versos simbolizam.

        Semelhante referência encontramos em Fera, em que a deterioração das coisas e dos seres se entrelaça com as relatividades da moral humana subjugadas pelo absoluto do Tempo: “A máquina humana se deteriora flácida. / As invenções, meramente, se sobrepõem / umas às outras e aos homens / que partem intemporais / vitimados por isso ou por aquilo”.

        Se em Lockdown, a mesma rua proibida de outrora é agora espaço de um eu-lírico a destilar seu olhar implacável sobre os homens: “A liberdade dos loucos / vira a ordem do dia”, em Manifesto de Dor, não há descuido em nomear os culpados por uma sociedade que se encaminha para uma barbárie odienta: “Selecionados, os que comem fazem manifestos / contra os que pedem pelo fim da fome / que a opulência do capital fomenta”. E em O Longo e Escuro Inverno das Estações, Paulo Franco sintetiza o desprezo dos indivíduos, alienados de suas pandemias, para com o tempo histórico, que lhes cobra dialeticamente a urgência de sua resolução: “A vida, assintomática, / nos impõe porões, mares ou marés inesperadas / e à deriva nem sempre percebemos / o peso das feridas que arrastamos, / grãos que somos na areia infinita do tempo”.

        Ou seja, nesta sociedade, que, em suas relações de classe, de trabalho e de consumo e no jogo de máscaras da politicagem vigente, aniquila a afetividade entre os indivíduos, os desconectam da relação com a Natureza, a poesia é um fenômeno capaz de arrancar-nos o Real de nossa realidade, uma junção do Tempo Poético com o Tempo dos indivíduos. Poesia que se percebe como flor inconveniente, mas necessária. Uma flor diferente da de Drummond, já que, se esta urgia a pausa para ser contemplada, a de Paulo Franco se reconhece como desprezada, porém se valendo de sua construção para resistir, já que, mesmo sendo “Alguma coisa inodora, / estanque, / uma flor fora de hora”, resiste diante do tempo fragmentado que corrói a tudo.

        Entretanto, como a poesia sabe que por mais que se obrigue a verbalizar sobre os tempos distópicos, é por meio de toda sua construção estética que ela se faz objeto consagrado a nos abençoar com a esperança, como constatamos no fechamento primoroso que é o poema Unção, em que o eu-lírico “olha / através da escuridão / vendo a unção / que é o raiar / de um novo dia”.

        O Curto Verão das Estações representa, por fim, um novo patamar na lírica de Paulo Franco. É uma obra que demonstra que a poesia pode e deve ser o instrumento do pensar os desafios de uma sociedade não consciente dos impactos de suas ações presentes, uma ciência maior do que a dos cientistas, uma filosofia maior do que a dos filósofos, uma poesia que rompe com os limites do eu e do espaço e se impõe frente ao tempo dos indivíduos e ao tempo de si mesma.

 

 

 

Reinaldo Melo é professor e Mestre em Teoria da Literatura e Crítica Literária.

 

Páginas 107, 108, 109, 110, 111 e 112

 

 

BREVE BIOGRAFIA

 

                                                                        Por Thaís Franco

 

          No calor da infância já era nítido que alguém de alma nobre estava florescendo. Em meados de 1974, ainda pequeno é homenageado pela criação do poema “Minha Terra”, que passou a ser o primeiro hino do município quase esquecido de Rio Grande da Serra, a mesma cidade na qual anos mais tarde Paulo Franco exerceu o mandato de vereador.

          Nascido em Santo André a 20 de agosto de 1960, atualmente reside em Ribeirão Pires. É casado e tem dois filhos. Formado em Letras, em Pedagogia e pós-graduado em Docência para o Ensino Superior, atuou como professor e diretor de diversas escolas e como supervisor de ensino.

          Um leonino, palmeirense que já trabalhou como servente de pedreiro, motoboy, jornaleiro, hoje aos 60 anos mostra a maturidade de quem já viveu uma vida inteira sem deixar de lado a paixão pela arte. Dono de uma retórica de dar inveja. Fascinado pela poesia, apaixonado pela família e carinhoso com seus animais.

          Do pequeno menino pobre com pé no barro a um homem vencedor, não apenas como evolução de um ser, mas vencedor em diversos concursos de poesia, além de ter feito história no mundo da política.

          Paulo Franco se elegeu em Rio Grande da Serra sem precisar fazer muito. Caso fosse eleito, tinha em mente poder exercer seu mandato com liberdade, como tudo em sua vida. Com o apoio do grupo “Resistência Pela Base”, que divulgou suas propostas, conquistou uma vaga na Casa de Leis. Porém, as coisas na política não eram como Paulo imaginava. Insatisfeito por não poder exercer seu mandato de forma livre, enviou uma carta comunicando sua renúncia.

          Paulo Franco anseia sempre por descobertas. Não tem medo das mudanças, do novo. Transmite seus conhecimentos e suas experiências, sabe apoiar a todos que o cercam nas dificuldades. Ensina muito mais que teorias. Toda a sua criação é capaz de transmitir sensações desconhecidas aos seus leitores, preenchendo o branco das páginas com uma poesia sólida e precisa.

 

Páginas 113 e 114