OUTRO
“Só a poesia possui as coisas vivas.
O resto é necropsia.”
(Mário Quintana)
Creio que Paulo Franco esteja morto. Explico: para renascer, é necessário primeiro morrer. Ao menos, foi o que disse um outro poeta em um outro tempo. E de um outro poeta também, é a voz que ecoa pelas páginas d’O Curto Verão das Estações. Pois bem, não é a primeira vez que morre Franco: Houve um primeiro poeta corajoso a namorar a força bruta, um segundo poeta vivendo na dualidade de cada olhar e face, um terceiro poeta morando no sótão de suas lembranças e medos e tantos outros poetas não menores, mas nesta obra, o poeta deste tempo, nos brinda com uma esperança oculta em sua própria desesperança, quando na densa conclusão que marca cada poesia, sugestiona a solução para a causa que trata, mesmo que inerente a qualquer ação.
O velho Paulo, que sempre assistiu por obrigação a um tempo latente e voraz passando, agradece ao novo que pontua dessa vez o próprio tempo como se já tivesse passado. Este, liberta seus poetas antigos da angústia de ver o mínimo sucumbir aos anos, assimilando que o tempo sequer existe e que além do presente nada de fato há. Uma nova maneira de compreender o transcorrer da vida, onde tudo o que há é o agora, traz em essência textos curtos e objetivos, carregados com um peso, dessa vez concentrado, simplificado, para compreensão de quem recebe o murro, posto que a mensagem só é concluída se pode ser entendida, mesmo que ainda mascarada nas poderosas metáforas de sempre. Em meio a criticidade direcionada a uma sociedade que cospe suas ideias e ideologias, compradas e vendidas, em uma velocidade ameaçadora e feroz nas redes, os poemas mais recentes também são velozes na maneira como moldam suas ideias e apresentam suas causas, haja visto, a vastidão da maior explosão do universo, exprimida em três valentes versos no Big Bang. Ali um poeta morre e outro renasce. Paulo Franco, este renascido, está incomodado com a falta de profundidade na maneira em que olhamos tudo o que deveria ser profundo, como se tivéssemos medo dessas profundezas ou como se simplesmente não enxergássemos a necessidade de conhecer o fundo de tudo o que existe. Nessa linha, Mares e Marés aponta para a liquidez e superficialidade de tudo o que se discute e de que se vê, em bandeiras levantadas que não simbolizam nada, mesmo que cultuem a ordem e o progresso. Sentimos essa chamada de atenção de maneira objetiva, numa espécie de simplicidade profunda, como se o poeta que vivesse no fundo, viesse à superfície para nos alertar. No entanto, apesar da simplicidade lógica que chama a atenção nesta obra, quando comparamos com obras passadas, engana-se quem acredita que pode encará-la a seco. Em certos momentos, encontramos uma espécie de pontualidade – na busca do aqui e do agora – como em Cabo de Guerra, mas por detrás, a discussão ideológica viril rasga a própria pontualidade e a arrasta para outra direção, puxando consigo a ideia não-efêmera, existencial, do que somos e do que fazemos, como tudo o que se busca em arte. Reforço essa observação citando um poema que parece contraditório à tudo o que disse aqui, Jerusalém: a noção da pequena dimensão do que somos e clareza da dimensão expandida do tempo posiciona um poeta fixo em uma vida flutuante. Esse texto, repito, parece contraditório, mas conclui revelando outrem que o habita em outro tempo.
Há também aqui presente, uma maneira ainda mais lírica de demonstrar o desconforto pelo que conhecemos, contrastado com o natural medo pelo que desconhecemos. Em Essência (o poema), notamos com clareza esses pesos e medidas colocados na balança, como a velha consciência de que é estranho temer os mortos, quando vivemos diante de inúmeros e independentes vivos. O desconhecido, com o caminhar da vida, passa a ser uma necessidade, uma continuação, uma abertura, uma janela, um escape. O que conhecemos está fora do lugar. Ou seria a voz do poeta que estaria? É provável que seja e que o próprio tenha consciência disso. O poema Datilografia traz a síntese do que sinto no contato com esta obra, em suas próprias palavras: O poeta é outro.
Este livro se abre e se fecha da mesma maneira, como se encerrasse um ciclo ou como se fosse de fato cíclico. Em Unção, o poeta exprime novamente a sua esperança sobre a própria desesperança, exprime a existência de um novo poeta dentro do próprio poeta e de uma nova vida dentro da própria morte. E o tempo quase para. Talvez para nós que vivemos junto deste Paulo Franco que aqui está, pouco do que foi dito aqui seja revelador. Mas para você que está há 100 anos à nossa frente no passar linear do tempo, tenho uma informação que pode ser surpreendente: creio que Paulo Franco esteja vivo.
Vinícius Nunes Franco
Músico, Escritor e Arte-Finalista
Páginas 11, 12, 13 e 14
A CRUZ
O poeta
de posse
da palavra fel
pode acender
as chamas
da palavra luz.
E tocando
na palavra céu
faz ressentir
os pregos
na palavra
cruz.
Página 15
A RUA PROIBIDA
Cansam-me esses muros imaginários
que detém o meu corpo,
porém não o meu pensamento
que traduz a minha alma
libertina e portadora de um coração libertário.
O silêncio ruidoso da rua proibida
desmascara o irmão que passa
alheio à dor do outro
que também não o percebe infame.
O meu quintal é um jardim
de flores que não colhi.
Nunca fiz de mim
o que deveria semear para me florir.
À deriva, o meu endereço é provisório,
como provisório sou
para cada olhar que passa
e cumprimenta o que pensa que vê
o que não sei se sou.
Semelhantes, nos escondemos de nós
em nós indesatáveis
para que o próprio esconderijo
não seja descoberto pela emoção
meticulosamente resguardada de si.
Cansa-me essa casa grande
de cômodos que não uso.
Meu coração é uma senzala
de açoites, sem escala, a tinir,
que me aplico durante as noites
em uma eternidade, que diminuta, cala,
ainda que eu não consiga dormir.
Páginas 16 e 17
ASAS AO VENTO
Há pedaços de sonhos doces
esparramados pelos cômodos.
No tanque,
peças mal ensaboadas.
No tempo,
a peça necessária
para o espetáculo
de cada instante.
Em cada momento
um sentimento único,
indigesto ou não.
Asas ao vento
levam-nos
a um tempo indizível.
A tradução da alma
está na palma da mão
em cada gesto
obsceno, de aceno de bem ou não.
Abraço, adeus,
um aperto no coração
que nem dói.
Página 18
BIG BANG
A vida é inevitável.
A morte,
uma necessidade.
Página 19
CABO DE GUERRA
A ideologia
pode ser do bem ou do mal.
O meu país é arrastado
ao esgoto do mundo
em nome do bem e do mal.
As certezas ou dúvidas que possuo,
nem sei se são
do bem ou do mal.
Mas as mortes
não são números.
Atrás dos índices
há dores.
Abaixem as faixas, as cores,
que os lutos precisam passar!
Página 20
CASA DO AMANHÃ
Amanhã seremos outros.
Quem nos viu hoje
nunca mais
verá a mesma pessoa.
No amanhã
morarão outros eus
que não seremos mais.
No instante cabe
meramente
a casa do hoje.
Em um outro dia,
uma outra casa
distante no tempo,
estática,
talvez.
Porém, outra
a abrigar outros.
Mutamos com a constância
imperceptível de um jardim
com flores
que dia após dia
desabrocham e caem
para outras florirem sem fim
enfeitando no tempo
a casa das pessoas
do amanhã que passarão,
possivelmente,
sem observar o inconstante
jardim.
Páginas 21 e 22
COLAPSO
Em colapso
o coração
repulsa o medo
invisível.
A morte
ao longe
acena
para mais
algum desconhecido,
meramente um estranho alguém.
A vida do outro
é uma estátua
de sólido ódio
que acirra
a liberdade
que já não convém.
A cidade transeunte
para.
A desigualdade
agora escancarada
inunda
o mundo cão
do capital
que sangra.
Páginas 23 e 24
CORDEL
Não há um tempo exato
para as coisas.
Encruzilhadas nos acenam
para as decisões que adornam
o nosso livre arbítrio
que pode querer não ir
diante do chamado
de cada caminho.
Visões minadas,
múltiplas estradas,
torres de babel.
A felicidade
é uma ambição pobre
como uma estrofe nobre
em ritmo de cordel.
Página 25
DATILOGRAFIA
As teclas, apesar de amareladas,
as mesmas.
Os dedos e sonhos,
nem tanto.
O tempo é outro.
O poeta
pousa a sua idade
diante do teclado envelhecido
que de saudade
dói.
O poema não floresce.
O poeta é outro.
Página 26
DIGITAL
Olho para a ponta
dos meus dedos
e não me identifico
além das sagas que toquei.
Os olhares estranhos, entretanto,
reconhecem a minha identidade
nas entrelinhas do que tento disfarçar.
Apesar das máscaras obrigatórias,
sabem os meus números,
gostos, atitudes, sonhos
e deduzem os meus medos.
Eu, meramente,
espio o M na palma
da minha mão
que a apalpar
o meu antigo rosto
não me enxerga
nas linhas do tempo
que vivi.
Penso, então,
nas linhas das pipas
que meus dedos empinaram,
mas as minhas digitais
também não estavam na infância
desprovida de R.G.
ou fé que acalmasse
o mesmo sentimento
de inconstância.
Páginas 27 e 28
DIVÃS
Sexualidades diversas
ao que a face determina ao Face
contradizem-se no reflexo dos espelhos
que sombreiam almas vãs.
E das almas
sofreguidões em risos
que caricaturam guizos
que são dores tatuadas pelo corpo
que contêm o intraduzível
destes sentimentos que se confundem
entre o frenético deste festival de cores
que é um carnaval de dissabores afãs
meio aos desamores dos encantamentos
propiciados, quase sempre, pelos tormentos
de pretensos eternos relacionamentos
sentenciados aos divãs.
Página 29
DO NADA AO ALÉM
Aliciei-me ao meu quintal
como quem se alista
à cruz dos mártires.
Alguns pedaços decepados
dos meus sonhos encerrados
foram sendo perdurados
nas divisas que os meus muros
representam entre eu e o mundo.
Nos varais penduro o meu tempo
escovando manchas
nos revestimentos que me vestem
para ir às ruas
qual um fugitivo
temeroso do que é.
Sentenças e portões
impus às pulsações
que ao coração convêm.
A vida
é um divisor de águas
entre o nada
e, quiçá, o além.
Página 30
DORES DO MUNDO
Arrasto as dores do mundo por dentro de mim,
embora não sejam minhas ou dos outros
que igualmente a arrastam em um latejar sem fim.
Não sou dono das mágoas, das feridas,
das contradições ou das ignorâncias,
nem das minhas e nem das dos outros,
mas me adentram suas sintonias
e contaminam meu coração perdulário
e me embrenham de sofreguidões
que esmorecem o meu cantar necessário.
Arrasto instintivamente uma sólida poesia
sobre algumas cicatrizes e culpas
destes crimes que assisto,
impávido sobre o salto alto
da opulência
de um lirismo ineficaz que contagia.
Imprudentes, alguns versos de tristeza
agasalham os olhares dos desprevenidos.
Outros, bem pontiagudos,
arranham os melindres
dos incautos,
bandeirismos de igualdades de papel
meio a urros e orações que desmantelam
os delírios
em nossa torre de babel.
Páginas 31 e 32
ESSÊNCIA
Há ruas nas quais nunca passei
(a maioria delas).
Poucos endereços conheço
e estes quase não os revisito
e se os revisitasse
ficaria ainda mais triste do que sou
por essência da não saudade.
As pessoas e lugares
que vejo pela primeira vez
causam-me a estranheza
da insegurança de nunca mais revê-los
(as pessoas e os lugares)
e então me sinto menor ainda
do que imagino que sou
muitas vezes sem saber.
As pessoas são estranhas
e tristes
e as que não são estranhas
são, pelo menos, tristes
por quererem aquilo tudo que não têm
e eu, que nada quero,
sou estranho por essência,
inclusive a mim
e triste, principalmente, aos outros
que apenas observam o vulto
do que pensam que veem.
Páginas 33 e 34
EPITÁFIO
A Pedro Lino Franco
A tarde linda
contrasta-se com a nebulosidade
das emoções.
Límpido o sol sorri
do olhar dos homens
que bombardeiam as ilusões
dos poetas e dos mártires.
Nas lápides os mármores brilham
epitáfios
à luz das lágrimas que oram
por aquilo que passou.
Anárquicas ou sonhadorescas
algumas revoluções desenharam
as décadas de sobrevivência e busca
a partir de 17 do século anterior.
Alguém na estrada dos instantes,
há um século, nascia
para parir a minha ancestralidade
na parede invisível do tempo
sem hereditariedade alguma.
A tarde tímida
brinca com a saudade
entregando-se à noite
que adormecerá no sempre
desse hoje que amanhã já não existirá.
Páginas 35 e 36
FAQUIR
Arrasto a noite
qual faquir
que nos segundos
se tortura insone.
Ouço a escuridão que murmura
no coração dos homens
que se perdem
na procura da ilusão
que os contém.
Pirilampos perambulam
pelos sonhos
que dormem
em meus esconderijos.
Aguardo a luz
enquanto vago pelos cômodos
que em penumbra
adormecem passados de ancestrais
que não serão esquecidos.
Há um vazio
a preencher cada pedaço de silêncio
aconchegado nos ruídos pontiagudos
dos ponteiros que embalam a melodia
desta noite pandêmica
que alguns ratos não percebem.
No esgoto das almas
algumas ideologias antigas
viralizam sem antídoto
exterminando os sonhos,
que globalizados,
banalizam o instinto de sobrevivência
e orquestram suicídios
em nome de alguns credos
que os credenciados ao céu eterno
geram bestialmente
meio às goiabeiras deste inferno.
Páginas 37 e 38
FERA
A mão enrijecida pelo tempo
tenta a intenção do texto
na tecla envelhecida
por ideais que não dormem.
A gente acaba em esquecimentos
na mecânica das coisas
que passam aligeiradas pelo digital
das nossas emoções que não podem ser descritas
por serem irracionais,
apesar de algumas boas intenções.
A máquina humana se deteriora flácida.
As invenções, meramente, se sobrepõem
umas às outras e aos homens
que partem intemporais
vitimados por isso ou por aquilo.
A velha Olivetti é laica, leiga, lenta.
O Face vocifera a fera solta
no ar da decomposição moral do dia seguinte
com todo o requinte dos que ignoram o passado
e apontam para o vazio de um futuro
que nos deteriora o tempo todo
meramente por acinte.
Matamos e morremos porque digitamos sem pensar.
A velocidade é uma ordem.
A datilografia
impunha a competência da palavra pensada.
Mas pensar hoje cansa.
Então o impulso imediato impera
e a fera maquinalmente ruge.
Enrijecidos corações que não entendem
que os impérios passam,
os poderes perpétuos trocam de mão
indiferentes às governabilidades estúpidas
e necessárias.
Há muito optei pelo sol das almas.
Há muito mais a escuridão
norteia a brutalidade humana
em nome da supremacia de poucos
sobre a taxa de mortalidade de muitos.
E o tempo? E as máquinas? Os impérios?
Do tipo às esferas. Das esferas ao digital.
Do digital ao eterno desse nada intermitente.
O coração enrijecido pelo tempo
traça a intenção do poema poente
na nuvem de infinito
que a fera em nós
na poesia captura
nessa dor latente.
Páginas 39, 40 e 41
FESTA
Na festa do silêncio
as palavras se calam
reprimidas
por não terem o que dizer
a cada sentimento omitido
por uma ordem que não se vê.
A fala falha gaga diante do medo
e o silêncio onipresente
impera onipotente
sobre o que nem pode mesmo
mais ser dito.
Escravizados
os sonhos que virão navegam
sem cor ou esperança
em uma dança sem som,
fora de tom
a deglutir evangelismos
em cultos sobre o nada.
Na vastidão do silêncio
a nau dos degredados gritos
pranteia os olhares das desesperanças,
das sofreguidões que infestam os conflitos
por não ver a realidade em festa
desdenhando a comunhão dos mitos.
Páginas 42 e 43
FLOR DA AURORA
Afago o meu olhar, pétala distante,
com a frivolidade da insensatez
dos loucos sentimentos
que me recompõem em um jardim sem cor.
Vasculho em meus boçais esconderijos
as verdades que perdi
por escondê-las em caráter permanente
no escorrer das estações e cheiros.
No horizonte
alguma coisa dos dias vividos
que parece não fazer sentido
no real da abstração
que é o perfumar da aurora.
Alguma coisa inodora,
estanque,
uma flor fora de hora
que desabrocha
apesar da tempestade
constante
a alagar a semeadura
que não vai vingar.
O tempo. Oh! O tempo!
Este invisível destruidor de sonhos
que não ressuscitam a esperança
sobre o que se foi
para nunca mais
como uma flor sem broto,
arrancada da raiz
a espiar as suas últimas pétalas
que caem.
Páginas 44 e 45
HIPÉRBOLE
A distância
entre um segundo e outro
é uma eternidade
diante da pequenez daqueles dias
que não terminam nunca.
Há um mundo em mim
a cada verso que carrega
a dor dos semelhantes
que pranteiam esse mar pandêmico
de dissabores e procuras vãs.
Há no divã um inferno
de alucinações e ansiedade
que passeia como um vírus
pelas ruas proibidas
sob um céu, meio a arranha-céus
desta ou de qualquer outra cidade.
Página 46
INSÔNIA DOS DIAS
A noite sobre mim
sombreia o dia que disfarço
desfazendo-me das réstias
do indizível de cada estação.
Há um cansaço latente no tempo,
na administração das coisas
que estão eternamente pendentes.
Os seres amoitam
suas dores e dependências
aonde as coisas estão arrumadas
em aparente desorganização
no estar.
As janelas
nem sempre fotografam
as ruas como elas são.
Nas cidades, falta espaço
para a parca luz das almas
que vagueiam em desilusão.
Os dias nem sempre
nas frestas e buracos de fechaduras
amanhecem azuis
quando as portas
estão trancadas para a emoção.
A noite acaba virando o porvir
da razão da insônia dos dias
que já amanhecem repletos de escuridão
quando o coração está cansado de sentir.
Páginas 47 e 48
JAULA
Havia um anjo
que sobrevoava a gaiola
da minha emoção menina
porque nela residia um encanto
acarinhando o meu dia a dia
que amorteceu na lembrança ruidosa
do anoitecer
meio a canto de ave de rapina.
A minha alma engaiolada pulsa
um coração sobrevivente
entre grades instintivas que omito.
Um bicho encurralado
pela ordem de silêncio
que algum supremo determina
para enjaular
a ansiedade do grito.
Página 49
JERUSALÉM
Eu vivo em uma rua pequena
de um mundo bem grande
riscado por uma vastidão de ruas
grandes e pequenas.
Só não sou pequeno demais
porque em qualquer rua
deste mundo de descaminhos
eu seria outro jamais.
Sou absolutamente diferente,
embora não independente
de todos os outros eus
que vivem em todas as outras ruas
que não são a minha.
Na minha rua não tem estátua.
Há ruas com estátuas.
Na minha rua não tem
um monte de coisas
que outras ruas têm.
Mas na minha rua há a minha casa,
a única casa do mundo grande
que abriga o único eu que possuo.
Às vezes, acho
que no mundo grande
há uma única grande rua.
Só o que confunde são as esquinas
e os oceanos e os desertos…
Então, eu chamo a minha rua
de Jerusalém,
sabedor de que nada é de ninguém
e não é preciso um caminhar a muito além,
pois até a minha casa,
em outro tempo
hospedará um outro alguém.
Páginas 50 e 51
JUÍZO FINAL
Escondidos do invisível,
os homens em suas casas
mumificam os instantes
deste agora que é lento
e dói.
A lua de abril
desabrocha ainda
neste céu de escuridão
meio a noites que dormem
enquanto demoram a passar.
O dia seguinte
é uma incógnita.
Economia ou vida?
Debates ao vivo
fazem de conta
que os mortos voltarão
ou que a vida do outro
não vale a pena ser guardada.
Os sonhos se entrelaçam
à ambição adoecida.
Há dores no invisível distante
que pouco a pouco se aproxima
transformando-se em faces
que se decompõem.
As máscaras escondem os sorrisos,
mas aliviam os prantos
do concreto das dores
dos que perdem entes antes da hora,
qual um juízo final
inesperado
e irreversível.
Páginas 52 e 53
LABIRINTO
Vislumbro
um mundo diferente.
Resisto à realidade
como quem pressente fezes
no vírus do olhar alheio
contaminado por aquilo que vê.
A verdade
na verdade
inexiste.
Mas ainda bem!
A fé ordena
a bestialidade
da desordem dos fatos
que à ordem do sistema
convém.
De fato,
não me encontro
um animal dócil,
acorrentado entre feras,
a reagir.
À margem disto tudo,
a humanidade é sempre um porvir,
um aglomerado
de engodos e enganos,
verdades inventadas
para erguer muros que irão ruir
e cidades
que serão bombardeadas,
em breve,
pelo labirinto
deste mal ideológico
em nós, sem lados,
a nos sucumbir.
Páginas 54 e 55
LEMBRANÇA
Das encruzilhadas
pelas quais
cruzei
arrasto
na lembrança
apenas as
interrogações.
Página 56
LOCKDOWN
As janelas espiam
vorazes
os vírus que trafegam
nas pessoas
pela rua proibida.
A ganância acirra o ódio
nas praças
e igrejas embandeiradas
enquanto os olhares
coagulam
diante dos índices
incrédulos.
Cabisbaixos sentimentos
menosprezam
a insensatez.
Confinados
os corações planejam fugas
para algum campo distante.
A liberdade dos loucos
vira a ordem do dia
enquanto o sistema quebra
a observar a agonia
do capital sem valor moral
para abrir as portas
e as janelas trancadas,
finalmente,
sorrirem escancaradas ao sol
desse nosso instintivo lockdown.
Páginas 57 e 58
LUA NA JANELA
Uma moldura embriagante
entre o quarto, minha estante e o infinito,
faz das sombras nessa noite
o outro lado do horizonte do meu grito.
A janela, neste instante,
inebria-se de luz na escuridão
enquanto o meu olhar fulgura na ilusão
estando em mim a divagar distante.
Figuras de linguagens se esparramam
sobre a minha escrivaninha
enquanto um poema
refletido pela luz da noite
em meu parco coração se aninha.
E na parede oposta à luz da lua
é desenhada em sombras,
que se movem lentamente, a janela
e o meu olhar vai recriando uma vidraça de infinito
meio a sonhos que transformam o meu grito
em um poema de aquarela.
Página 59
MACHADO
Escuto ainda
os pingos das chuvas
da minha infância.
O pai, que assinava com as pontas dos dedos,
nesses dias de chuva, não trabalhava
e a vida de dificuldades,
assim, parecia mais rica.
Ouço ainda os ruídos do machado
das desesperanças que eu não via,
mas adorava, sem verbalizar,
o companheirismo
de uma ignorância carinhosa que nos preenchia
com histórias de plumas e assombrações.
A chuva leve e persistente
era um adorno
para o peso da sobrevivência.
A casa, rústica e pequeníssima,
virava uma imensidão lúdica
na mansarda de sonhos
que a infância faz imaginar.
A mãe nem sempre via assim.
Fogão de lenha rachada a machado
queima a alma para quem,
casmurra, entendia Capitu.
Meu pai era um Bento
sem conhecimento.
Bem depois eu entendi
a minha infância dúbia,
mas já era tarde,
embora a chuva latente
insista em alguns meus redescobrimentos
que nem são machadianos,
mas casmurram os meus sonhos,
pois que a alma quente
na lembrança ainda sente.
Páginas 60 e 61
MAIS-VALIA
Um lugar vago
no vagão do trem.
Um homem passageiro
por toda uma vida,
certo dia, inesperadamente,
não vem.
No mundo nada mudou.
A fábrica não parou,
e nem, muito menos,
o trem.
Página 62
MANANCIAL DA ALMA
O meu olhar é um turista
que se alimenta da tristeza dos homens
que se procuram em ruas estranhas
para descobrir semelhantes diferentes
dos estranhos da convivência
que teclam a conivência do estar
só.
O dia pode ser o inesperado
para quem passeia pelo desconhecido da ilusão.
O inusitado de cada olhar único
faz do manancial da alma um colírio
para acalmar o olhar que acolhe o coração.
Ah! O escândalo que é o tempo
escancarado em nós
que sabemos mais do que suportamos
sobre o inevitável correr das horas e seu fim!
Enquanto isso,
as ruas desconhecidas
remoçam as procuras
dos vazios que escondemos
dos outros que passeiam em nós.
Ah! Até podemos temer o óbvio,
mas o nosso instinto labiríntico
pede pelo desconhecido da ida
que clama logo pelo sentido da volta
ao nosso seguro íntimo mímico
que é o turismo da vida.
Páginas 63 e 64
MANIFESTO DE DOR
Há um ópio
a anestesiar algumas manchas de sangue
que mancham com verde e amarelo
a vermelhidão das consciências falsas
que buzinam panelas reivindicando o que desconhecem.
Crises que se mesclam
aos gritos represados de gols
meio à massa enfurecida
que clama por metralhadoras
às vésperas das urnas.
Selecionados, os que comem fazem manifestos
contra os que pedem pelo fim da fome
que a opulência do capital fomenta.
Homens que exterminam homens
enquanto grunhem coreografias
pelas avenidas ainda democráticas
entre uivos por intervenção.
Oh! Democracia
que clama
pela liberdade
que a destrói!
Oh! Liberdade
que extermina a verdade
deturpando a realidade
para banir os direitos
daquele que a constrói!
Páginas 65 e 66
MUNDO CÃO
No meio da noite
a garoa lacrimeja sobre os paralelepípedos
que observam a correria dos lixeiros
que recolhem as sujeiras
deste mundo cão.
Alguns homens de classe
desclassificam outros homens
para submetê-los à faxina
das ruas que adornam as suas sacadas
infames.
O lixo vira o alimento de tantos.
Na minha lixeira
os restos desta parca opulência
acenam para os andarilhos
que clamam por sobras.
O meu olhar
diante desta dor que contagia
passeia
pela rua da garoa dos garis
a perguntar a razão de tanta correria
nesta noite
impiedosamente
fria.
Páginas 67 e 68
NAS ESQUINAS DO INSTINTO
A vida, lúdica e hipotética
a gente decide de ouvido
nas sintonias das indecisões
dos múltiplos acordes de tempo
que tendem a nos acordar
em cada dedilhar de momento
nas esquinas do instinto
que nos musicaliza
em uma orquestra
de instantes que ruídam
o som das nossas almas,
muitas vezes, afônicas
e vasculham
as composições dos gritos
do infinito em nós
que se desatam em interlúdios
para instigar
as silenciosas sinfonias de emoções
nos ritmos de outros corações.
Página 69
NECROSE
Ainda vivo
(e) morro
por sua
ausência
(presente em mim).
Página 70
O ANDARILHO
Como inocente ave
a ciscar o chão
sob a espreita
de um olhar felino,
trilho os dias
absorto
como um velho
andarilho do destino
que carrega a singela
displicência dos sonhares
nos olhares de um menino.
Página 71
O ATEU
O poeta ateu
tateia o escuro
das crenças
necessárias
à caça
da composição
de nova estrofe
para um poema
inócuo
de fé.
A arte alimenta
o espírito das coisas
e torna desnecessária
a concretude dos deuses
inventados para aliviarem
a abstração do medo
devastador de razões.
Página 72
O DESESPERO DO MEDO
O coração ainda se move.
Sob as máscaras
o medo
entre a hóstia e o ópio.
Valores e volúpias
oscilam nas bolsas
que embalam a ambição
ou a simples sobrevivência.
Governos são enfrentados
com casamatas
que agora são casas.
A rua proibida
inibe a concentração
das rendas.
Os andarilhos
continuam esquecidos
em suas calçadas invisíveis
diante de um sistema que se via inviolável.
O medo frágil
a comandar poderes sólidos.
Algumas bestas
biroliram ódio nas ruas abrasadas
que deveriam estar desertas.
Os enfrentadores do medo
só se desesperam quando há falta de ar.
Mas o sistema ainda pulsa.
O coração ainda se move.
O planeta respira dor.
Páginas 73 e 74
O GATO
O meu felino olhar fere porque é fera,
mas assim como quem observa as quimeras
ajeita o meu coração de pedra que se parelelepípeda
em ruas repisadas pelos ancestrais do hoje.
Uma rua nova, uma esquina,
uma calçada velha,
um lampião que não existe mais.
A vida é apenas
uma espera de coisas e sonhos
que independem das noites ou dos dias.
Obcecado por ser feliz, ao acaso,
reinvento-me na infelicidade
destes cotidianos
que me alimentam
de metáforas entre as rotinas
ou o oposto disso.
E para me manter poeta ou cidadão
prefiro não decifrar
algumas incógnitas interiores,
apenas para me conter,
entretido no que pulsa
o meu etéreo coração
que, como um gato,
pula para trás
quando temeroso
frente as garras de qualquer paixão.
Com unhas e dentes
ronrono pela rua que me corrói.
Rápido de impulsos
apaixono-me pelo abstrato dos riscos,
equilibrista de uma decomposição
que dói.
E felino menor que sou,
invejo os pássaros
não porque voem,
mas por não temerem a queda
confiantes
nas asas que possuem.
Páginas 75 e 76
O LONGO E ESCURO INVERNO DAS ESTAÇÕES
Um homem triste é apenas um homem triste.
Um mundo triste produz inúmeros homens tristes.
Às vezes, o inverno dos nossos corações
invade o verão dos sonhos e inventa
ventos ocultos com velocidades inimagináveis.
A vida, assintomática,
nos impõe porões, mares ou marés inesperadas
e à deriva nem sempre percebemos
o peso das feridas que arrastamos,
grãos que somos na areia infinita do tempo.
Enquanto isso, no ambulatório das almas
sobrevivem à dor
os que medicam a sobrevivência alheia,
muitas vezes, virando óbitos estatísticos
que a poesia não vai metaforizar.
Índices, gráficos e ambições
podem nos condicionar
à liberdade ainda prematura
dentro desta cela que virou
o confortável esconderijo
daqueles que se habituaram à espera.
A matemática pandêmica da ambição
põe em xeque as bolsas
para que as linhas de produção
exterminem os nossos valores
em troca do nada
para não vermos que somos
os verdadeiros culpados
de sonharmos com a calma opulência
de um animal voraz
enquanto geramos a fome do irmão
que vitimado não tem paz.
Niilismos, fascismos e socialismos
se debatem
em nome de um próspero capital
que não sobrevive
sem os suicidas que produzem
em larga escala
a liberdade de consumo dos tolos.
O longo e escuro inverno nórdico
dos nossos corações
pode não representar a imunidade
das nossas almas afoitas
por uma rua de ilusões
ou por um abismo inesperado
qualquer,
pleno e repleto de aflições.
Páginas 77 e 78
O OLIMPO
Tenho um poema em carne viva
pendurado no varal da alma
a secar ao sol do tempo.
Alguns ventos
e as tempestades
o sacodem límpido
na varanda estática.
Libidinosos temas o transcendem
da eternidade ao nada
ou o oposto disto
como se ele fosse o Olimpo.
Às vezes, acho
alguns pedaços de versos
que são pedras,
às vezes sangue,
riso, dor.
Mas o poema em carne viva
não sai de sua transcendência
porque o varal é denso
e preso à realidade sucumbe
feito inocente réu,
não deixa o poeta
se alimentar do irreal
para versar as iras
e não chegar no céu.
Páginas 79 e 80
O PRISIONEIRO
Detido
em meu desencanto,
eu não entendo nada.
…Um prisioneiro
político
dos encantos da ideologia
de um conto de fada.
Página 81
O VASO
Não tenho jardins.
A sobrevivência urbana
me proporcionou, meramente, vasos,
mas minha alma seca
é dependente dos jardins que não possuo.
A independência das flores
nos vasos
é irreal.
Lá dentro de mim
prefiro as chuvas, o sol,
a estrada barrenta,
assim como as flores.
O asfalto ruidoso
deprime o meu silêncio
e eu me sinto um broto de vaso
a aguardar a poda que não vem.
Meu coração, esse deserto sem cor,
sem fim,
não aceita ser regado
na submissão desse quintal
que mata a deprimir
o não florir da emoção
que ainda sonha ser jardim
por não poder
ser matagal.
Páginas 82 e 83
OS MARES E AS MARÉS
Os corações se assombram
de silêncios que sussurram
fake News que contagiam uma onda de caos.
A ignorância calma dos incautos
cultua mitos em memes
que esparramam medos invisíveis
entre hinos e bandeiras que passeiam
diante da plateia de moradores de rua.
Nau à deriva,
a pátria cede seus valores
a exploradores determinantes e brutais.
Quase tudo em nome de um deus
inventado, neoliberal e maldoso.
Somos vítimas
como peixes sabotados por esgoto,
petróleo que vaza com cheiro de crime,
altares e palanques com vermes que mentem
aos que urram que a terra é plana.
Os mares esperam pelas marés
que devolvem os dejetos dos homens
para a praia que os mesmos homens
iriam descansar seus corações
que transbordam assombros que sussurram
que a morte vai banhar o nosso caos.
Páginas 84 e 85
PÃO
A mão
que adeus acena
amena em ida
pode ser a mão
que mata,
apunhala
para deter
o outro ser em lida.
O pão
que sobra
em mesa farta
pode ser
o pão que falta
em outra mesa
para findar a fome
e manter a vida.
Página 86
PARALELOS
Piso o parco chão
sem direção.
Ruas estreitadas
pelo tempo de espera me levam
aos abismos do meu coração.
Uma vida de encruzilhadas
com semáforos
de sim
ou de não.
Algumas vezes
nem ir e nem ficar.
Em outras, partir
já querendo voltar.
Paralelos de mim
em cada estilhaço de pedra
tentam se encontrar
neste trajeto sem fim.
O meu olhar
é um reduto de poemas
que se escondem do papel
que quer detê-los
como flores presas no jardim
para expô-los ao olhar de todos
como um pranto colorido
desenhado a nanquim.
Páginas 87 e 88
PAREAR DOS SILÊNCIOS
Nada a parear na ausência de dicção
dos nossos corações instintivos
que marcham cabisbaixos
sem saber para onde.
A vida é uma ordem de prisão
sem habeas corpus.
Por vezes,
um aglomerado de indecisões
que geram decisões eternas.
Caminho sem retorno,
verso sem rima,
brancas nuvens de felicidades inventadas
no nebuloso céu de tempestades iminentes
como o risco no jardim de quem semeia mina.
A vida é um calar
que intimida grunhidos
nas pessoas que não gritam,
nos aflitos que pareiam silêncios
para que a comunicação não exista.
Viver é uma interface
que não facilita o parear intransitivo em nós
dos sentimentos que vivemos em cada momento,
pois que o instante seguinte sempre vem
e pode ser o esquecimento destes mesmos sentimentos
para a sobrevivência de uma rotina
que a ninguém convém.
Páginas 89 e 90
PINGO DE RIO
Espero o tempo passar
como o rio que vai no leito tortuoso, lento
em desfiladeiro desaguar.
Sou um rio e temo o oceano
(mais que a cachoeira)
que me espera
já que temo o tempo qual quimera,
pois bem sei que passa o momento
ao vento, assim como também a era.
Sou um pingo do rio que vai embora,
sou um outro toda hora.
E quem me vê por fora a cada instante
não percebe que nunca me viu,
porque sou a água em corredeira
que jamais permite que se veja duas vezes
a imagem de um mesmo rio.
Página 91
PLENITUDE
Uso, no poema, a palavra esperança
meramente para tê-la
nas coisas,
nos homens,
nos dias.
Bem como
quando uso a palavra pedra
tento edificar
aquilo tudo
que não é palpável.
Às vezes,
a esperança é uma pedra.
Às vezes, um caminho.
Às vezes,
é apenas esperança mesmo
em toda a sua
plenitude.
Página 92
PONTE
Fiz uma ponte
entre o que sou e o mundo.
No meio dela,
observo o rio das coisas,
à margem do tempo,
qual ondas que escorrem folhas
que caem ao vento a cada segundo
enquanto gira o mundo.
No rio, o reflexo de uma lua nova
sobre a minha cabeça velha.
Era a mesma lua da minha infância.
Eu, outro.
Um lunático vitimado
pelo reflexo do tempo
que girou
indiferente à ponte,
ao mundo,
a mim
que outro sou,
como um rio,
é outro a cada segundo.
Páginas 93 e 94
PRECIPÍCIO
Um piano de cauda
que perdeu alguns acordes
na melodia do tempo, me sinto.
Há ainda canções e versos,
mas que a inspiração
não dedilha.
Uma ilha que ficou sem mar.
Um mar sem universo.
Um verso sem poema
qual um barco à deriva
na correnteza que antecede
a cachoeira
de um belo e ruidoso precipício.
Página 95
REDE
É sempre melhor
a gente não se arrepender
do hoje.
À noite, o silêncio
necessário
da escuridão
emite ruídos
sobre palavras
não pronunciadas.
O hoje não é definitivo,
porém
a eternidade
pode estar contida no instante
em uma frase maldita
e aí será irreversível
a palavra dita.
O silêncio é uma ode,
por vezes, uma ordem,
já que o sentimento
consentido pela boca
contamina de mal
a nossa rede
de aparência ilusoriamente
virtual.
Páginas 96 e 97
REPRISE
O silêncio
aliciador de um medo estúpido
remoça a ignorância
dos ímpios.
Gritar não basta mais.
A rua profana
é um desfiladeiro
de limo moral.
Pedras
pranteiam
pela escuridão
dos que divulgam
uma terra plana.
O riso, hoje,
é um antídoto
para um tipo de dor
que não se vê,
embora reprisada
o tempo todo
em horário nobre
para os olhares pobres
que definham
prisioneiros
do extermínio
na tv.
Páginas 98 e 99
TERRA PLANA
Fecho as frestas
da minha casa
para caso algum olhar matreiro
tente adentrar.
Meu coração, na janela,
é uma quarentena de dor,
um vírus em mim
que pulsa o que não posso conter
diante da estupidez de meliantes da fé.
Alguns orquestram
que a terra pare
para conter o invisível,
mas a ambição
maestra que o lucro resista
ainda que o semelhante desapareça
bem distante das mansardas
que se imaginam inatingíveis
em uma terra plana.
Volátil, meu olhar cansado
gira o mundo epidêmico
de verdades irreversíveis
que são negadas
para regar a estupidez determinante.
Páginas 100 e 101
TIRANIA
A tirania
passeia pelas ruas
em traje de gala
sob pele de cordeiro em pose.
Em muitos,
por detrás das meninas
dos olhares,
a tirania é anciã.
A tirania testa a liberdade
que não se quer
porque se tem
e atesta a insanidade
dos que querem
grade ao outro
ainda que cientes
de que a eles
a detenção não convém.
Página 102
TORRE DE BABEL
Na multidão,
a solidão deprime
o descompasso dos sentimentos
que impõem silêncios sórdidos.
As dores similares
nos semelhantes
causam estranhezas
na linguagem que deveria soar una.
A distância
entre as razões
gera intransponíveis lacunas.
As fraquezas que criam deuses
fornicam o inferno mais cruel.
Cabe no silêncio a doutrina
do exercício de ouvir
os gritos que no coração
já não se pode mais conter
ao se ver ao longe o céu.
Na multidão
as máscaras escondem
risos e prantos que passeiam ao léu.
Olhares executores
decretam outros silêncios
que alicerçam
essa torre de Babel.
Páginas 103 e 104
UNÇÃO
No poeta
em pandemia
clama
por um verso
a poesia.
Por entre prantos
cria o poeta encantos
e confiante
olha
através da escuridão
vendo a unção
que é o raiar
de um novo dia.
Página 105
O SER, O ESTAR E O TEMPO DO POETA
Por Reinaldo Melo
“Só a poesia não está contaminada,
só a poesia está fora do negócio.”
(Roberto Bolaño, in 2666)
Há momentos em que as civilizações e seus indivíduos comuns deparam-se com impasses que os levam a questionamentos que, até então, lhes eram inimagináveis. No entanto, para um tipo de indivíduo, todos os momentos de todas civilizações e de todos os seres humanos são providos de impasses e de questionamentos constantes: eis a condição do poeta.
O Curto Verão das Estações, de Paulo Franco, é uma obra que nos remete não apenas às agruras do presente, mas ao abismo entre o real e os anseios dos humanos e, principalmente, ao intervalo entre o mundo a ser absorvido em seu âmago e à linguagem em sua obsessão de traduzir esta essência.
Mas como procede-se o movimento da palavra ressignificadora nos meandros do ato de poetizar? Onde se aloca o ser do poeta nesse jogo da palavra deslocada da referência que ela deveria significar? Quando o tempo do poeta dialoga com o tempo presente dos homens frente a este deslocamento espaço-tempo-verbal?
Consciente de que atribui a si uma tarefa longe de ser plenamente lograda, Paulo Franco já nos alerta, em seu poema de abertura, A Cruz, de que a palavra poética é uma via-crúcis ambígua: maldição e salvação são elementos discrepantes. Porém, no jogo sonoro-rítmico fel / luz, céu / cruz nos é revelado o caráter uníssono das aparentes contradições entre esses termos. Eis aqui, já, a poesia que se sabe consciente de que as relações de sentido, mesmo que opostos, se equivalem em sua construção, e cabe ao leitor aceitar a jornada oferecida pelo poeta ou, então, manter-se em seu mundo maniqueísta e pseudocômodo.
O mesmo movimento do seu poetar, no que se refere à palavra poética como detentora de um saber para além do olhar comum, vemos em Dores do Mundo, em que a palavra torna-se efetiva a partir de sua própria natureza dialética: “Arrasto instintivamente uma sólida poesia / […] de um lirismo ineficaz que contagia” são versos que exigem do leitor a atenção à cinesia da palavra. Ciente de que ao mesmo tempo é instintiva e ineficaz, a poesia, mesmo diante da condição de um olhar opulente, se demonstra sólida e contagiante. Logo, para renomear o mundo, a poesia deve primeiramente voltar-se à sua própria nomeação.
Em O Ateu, encerra-se de maneira magistral o ciclo de reestabelecimento do que a poesia foi, é e sempre será: “A arte alimenta / o espírito das coisas / e torna desnecessária / a concretude dos deuses”. Conhecedor de que a linguagem verbal nascera poética, porém, ao longo das eras, perdeu sua magia frente à significação do mundo, Paulo Franco faz de sua palavra um procedimento a resgatar o mítico abandonado na relação significante/significado, mesmo que em versos posteriores, como os d’O Olimpo, pontuando a relação de sua lírica moderna com a clássica, volte a fazer a poesia duvidar de sua própria elevação: “Mas o poema em carne viva / não sai de sua transcendência”.
Ainda assim, a lírica moderna aborda, desde a crise do Sujeito, a imprecisão das alegorias sobre a metafísica: se transcender o espaço é tarefa árdua para o poeta, resta-lhe elucidar-nos de que o eu-lírico moderno deve se situar na gestação poética, entremeio do que se é e da realidade em que se encontra, como vemos nos versos de abertura de Ponte: “Fiz uma ponte / entre o que sou e o mundo.” A partir daí, Paulo Franco institui uma simbiótica jornada do mundo para o eu, do eu para a poesia e da poesia para o mundo.
Há, pois, uma fusão, um ser estando e um estar sendo, condição da qual o eu-lírico sabe-se deslocado, como inferem os versos de Paralelos: “Algumas vezes / nem ir nem ficar. / Em outras, partir / já querendo voltar”. O ser/estar do poeta é o espaço para que, em sua formulação, a poesia saia do estado de transcendência em si, já que, nesse mesmo poema, o eu-lírico confessa que o olhar derivado de seu deslocamento “é um reduto de poemas” ao mesmo tempo que alude à sua condição transitória entre o mundo poético e o mundo real, como se constata n’A Rua Proibida: “À deriva, meu endereço é provisório / como provisório sou”, e em Manancial das Almas: “O meu olhar é um turista / que se alimenta da tristeza dos homens”.
Todavia, é no tópos do memorialismo que Paulo Franco cria os poemas em que o deslocamento do eu chega a se desvanecer: “A casa, rústica e pequeníssima, / virava uma imensidão lúdica / na mansarda de sonhos / que a infância faz imaginar”, in Machado. Neste mesmo poema, o eu-lírico une o trabalho braçal do pai com a erudição da mãe, como elementos a harmonizarem a pureza infantil, esta agora desfeita na casmurrice dos “[…] redescobrimentos / que nem são machadianos”.
Em Epitáfio, lúcido do acaso da predeterminação das heranças que carregaria, o poeta edifica a analogia temporal entre o nascimento de seu progenitor com a tentativa de indivíduos em materializar as utopias, que lhe são tão caras nas obras anteriores: “Alguém na estrada dos instantes / há um século, nascia / para parir a minha ancestralidade / na parede invisível do tempo / sem hereditariedade alguma”. É como se a memória fosse o lugar definitivo para que poeta e poesia se imbricassem num espelho cujos reflexos são a quase totalidade da compreensão do seu eu para com a sua poesia e da poesia para com o seu eu, havendo, diante de suas naturezas abstratas, a resignação mútua entre estas duas substâncias.
E por mais que a poesia possua a percepção de sua incapacidade de nomear o real, é nos versos sobre este real que se apresentam todos os indivíduos como detentores de todas as pandemias de todos os tempos.
No poema Faquir, há o reforço de que a poesia combate a banalização do mundo provocada pelas ideologias que esvaziam o sentido do ser: “Ouço a escuridão que murmura / no coração dos homens / que se perdem / na procura da ilusão / que os contém”. E se os versos “No esgoto das almas / algumas ideologias antigas / viralizam sem antídoto” pontuam que há o vírus de ilusões sem cura a obscurecer as consciências, o eu-lírico envereda-se pelas réstias de luz, “Pirilampos perambulam”, que estes mesmos versos simbolizam.
Semelhante referência encontramos em Fera, em que a deterioração das coisas e dos seres se entrelaça com as relatividades da moral humana subjugadas pelo absoluto do Tempo: “A máquina humana se deteriora flácida. / As invenções, meramente, se sobrepõem / umas às outras e aos homens / que partem intemporais / vitimados por isso ou por aquilo”.
Se em Lockdown, a mesma rua proibida de outrora é agora espaço de um eu-lírico a destilar seu olhar implacável sobre os homens: “A liberdade dos loucos / vira a ordem do dia”, em Manifesto de Dor, não há descuido em nomear os culpados por uma sociedade que se encaminha para uma barbárie odienta: “Selecionados, os que comem fazem manifestos / contra os que pedem pelo fim da fome / que a opulência do capital fomenta”. E em O Longo e Escuro Inverno das Estações, Paulo Franco sintetiza o desprezo dos indivíduos, alienados de suas pandemias, para com o tempo histórico, que lhes cobra dialeticamente a urgência de sua resolução: “A vida, assintomática, / nos impõe porões, mares ou marés inesperadas / e à deriva nem sempre percebemos / o peso das feridas que arrastamos, / grãos que somos na areia infinita do tempo”.
Ou seja, nesta sociedade, que, em suas relações de classe, de trabalho e de consumo e no jogo de máscaras da politicagem vigente, aniquila a afetividade entre os indivíduos, os desconectam da relação com a Natureza, a poesia é um fenômeno capaz de arrancar-nos o Real de nossa realidade, uma junção do Tempo Poético com o Tempo dos indivíduos. Poesia que se percebe como flor inconveniente, mas necessária. Uma flor diferente da de Drummond, já que, se esta urgia a pausa para ser contemplada, a de Paulo Franco se reconhece como desprezada, porém se valendo de sua construção para resistir, já que, mesmo sendo “Alguma coisa inodora, / estanque, / uma flor fora de hora”, resiste diante do tempo fragmentado que corrói a tudo.
Entretanto, como a poesia sabe que por mais que se obrigue a verbalizar sobre os tempos distópicos, é por meio de toda sua construção estética que ela se faz objeto consagrado a nos abençoar com a esperança, como constatamos no fechamento primoroso que é o poema Unção, em que o eu-lírico “olha / através da escuridão / vendo a unção / que é o raiar / de um novo dia”.
O Curto Verão das Estações representa, por fim, um novo patamar na lírica de Paulo Franco. É uma obra que demonstra que a poesia pode e deve ser o instrumento do pensar os desafios de uma sociedade não consciente dos impactos de suas ações presentes, uma ciência maior do que a dos cientistas, uma filosofia maior do que a dos filósofos, uma poesia que rompe com os limites do eu e do espaço e se impõe frente ao tempo dos indivíduos e ao tempo de si mesma.
Reinaldo Melo é professor e Mestre em Teoria da Literatura e Crítica Literária.
Páginas 107, 108, 109, 110, 111 e 112
BREVE BIOGRAFIA
Por Thaís Franco
No calor da infância já era nítido que alguém de alma nobre estava florescendo. Em meados de 1974, ainda pequeno é homenageado pela criação do poema “Minha Terra”, que passou a ser o primeiro hino do município quase esquecido de Rio Grande da Serra, a mesma cidade na qual anos mais tarde Paulo Franco exerceu o mandato de vereador.
Nascido em Santo André a 20 de agosto de 1960, atualmente reside em Ribeirão Pires. É casado e tem dois filhos. Formado em Letras, em Pedagogia e pós-graduado em Docência para o Ensino Superior, atuou como professor e diretor de diversas escolas e como supervisor de ensino.
Um leonino, palmeirense que já trabalhou como servente de pedreiro, motoboy, jornaleiro, hoje aos 60 anos mostra a maturidade de quem já viveu uma vida inteira sem deixar de lado a paixão pela arte. Dono de uma retórica de dar inveja. Fascinado pela poesia, apaixonado pela família e carinhoso com seus animais.
Do pequeno menino pobre com pé no barro a um homem vencedor, não apenas como evolução de um ser, mas vencedor em diversos concursos de poesia, além de ter feito história no mundo da política.
Paulo Franco se elegeu em Rio Grande da Serra sem precisar fazer muito. Caso fosse eleito, tinha em mente poder exercer seu mandato com liberdade, como tudo em sua vida. Com o apoio do grupo “Resistência Pela Base”, que divulgou suas propostas, conquistou uma vaga na Casa de Leis. Porém, as coisas na política não eram como Paulo imaginava. Insatisfeito por não poder exercer seu mandato de forma livre, enviou uma carta comunicando sua renúncia.
Paulo Franco anseia sempre por descobertas. Não tem medo das mudanças, do novo. Transmite seus conhecimentos e suas experiências, sabe apoiar a todos que o cercam nas dificuldades. Ensina muito mais que teorias. Toda a sua criação é capaz de transmitir sensações desconhecidas aos seus leitores, preenchendo o branco das páginas com uma poesia sólida e precisa.
Páginas 113 e 114